Álvaro Garrido. “O bacalhau foi objeto de uma nacionalização cultural”

Álvaro Garrido. “O bacalhau foi objeto de uma nacionalização cultural”


De onde vem a ideia de “fiel amigo”? Como é que um peixe pescado pelos vikings se tornou o alimento preferido dos portugueses?


Álvaro Garrido é professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e profundo conhecedor da história marítima portuguesa e da pesca. É autor, entre outras obras, da biografia de um dos cultores salazaristas da campanha do bacalhau, o almirante Henrique Tenreiro. A conversa surgiu a partir da leitura do prefácio que Garrido fez da reedição de “A Campanha do Argus”, de Alan Villiers, tentando perceber aquilo que liga os portugueses a um peixe que é pescado a milhares de quilómetros da terra onde vivem, mas que se tornou uma companhia habitual no seu prato, sendo parte da sua identidade.

Quais são as circunstâncias históricas que levam os portugueses a encontrar-se com um peixe tão distante como é geograficamente o bacalhau?

Tanto quando se sabe, já havia negócio de importação de bacalhau desde a Idade Média, sobretudo a partir do séc. xiii, implicando permutas de sal com os países nórdicos, nomeadamente com a Noruega. Também havia abastecimento do mercado português através de negócio com os ingleses. Por conseguinte, o negócio de importação seria anterior à época moderna e às nossas primeiras viagens de descobrimento à Terra Nova, que foram realizadas pelos navegadores João Álvaro Fagundes e os Corte Reais, já na viragem do séc. xv para o xvi. A partir daí, sim, há expedições de pesca e de caça da baleia: os navios eram polivalentes, tanto caçavam como pescavam. Em 1506 já há um imposto sobre o bacalhau que entrava nos portos entre o Douro e o Minho, presume-se que não apenas sobre o que era importado, mas também sobre o que era pescado pelos navios e tripulações portugueses. O bacalhau já era objeto de um grande consumo no início do séc. xvi.

Não era inicialmente um consumo mais vocacionado para as classes mais pobres?

Há representações até na arte. No Gil Vicente, nas “Cortes de Júpiter”, há uma representação do bacalhau, e depois aparece, no início do séc. xvii, uma representação pictórica extraordinária da Josefa de Óbidos de um bacalhau seco da Noruega, igual ao que é ainda muito consumido atualmente na Sicília e no sul da Itália, que era um alimento para pobres, de baixa qualidade mas muito fácil de conservar, que não era igual ao salgado seco. Sabe-se que se consumia das duas maneiras: salgado seco, para as populações mais abastadas; e seco seco, para as populações mais pobres que conseguiam chegar a ele, sobretudo através das instituições religiosas. No séc. xvii, o consumo é generalizado, sobretudo através do negócios dos brokers ingleses em Lisboa e no Porto. É generalizado o consumo do “bacalhau inglês”, uma expressão popular que perdura até ao séc. xx, de um bacalhau que não era, de facto, inglês. Havia uma importação massiva de bacalhau salgado seco; já a pesca por navios portugueses foi muito intermitente e no final do séc. xvi terá sido interrompida por completo.

Por ordem dos Filipes de Espanha.

Exatamente. Portugal só retoma a atividade de armar navios para a Terra Nova no séc. xix, em 1835, pela Companhia de Pescarias Lisbonense.

Não é, portanto, de admirar que numa conhecida passagem ao seu amigo Oliveira Martins, Eça de Queiroz tenha afirmado: “Os meus romances no fundo são franceses, como eu sou em quase tudo francês – exceto num certo fundo sincero de tristeza lírica, que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada.”

Essa boutade do Eça é muito conhecida. O mito cultural do “fiel amigo” e toda essa caricaturização é quase toda do séc. xix, porque é uma era de massas em que a imprensa satírica é muito forte e há toda uma glosa satírica e caricatural que associa a fome do povo, as dificuldades de abastecimento e a escassez dos géneros alimentícios à falta do bacalhau. Tudo isso é do séc. xix. A fábula do bacalhau a pataco veiculada pela propaganda republicana é do séc. xx, mas também se verificam formas equivalentes nos anos 80 e 90 do séc. xix. A expressão “fiel amigo” aparece em 1820.

Isso depois tem uma continuação durante o salazarismo na ideia de que a cada português deve corresponder o seu bacalhau e da organização das campanhas do bacalhau.

O Estado Novo pega no mito do bacalhau e na incapacidade da República para resolver a questão dos abastecimentos, que foi uma questão muito candente sobretudo durante a i Guerra Mundial, para reelaborar uma solução autoritária e corporativa da questão do bacalhau, substituindo as importações por produção nacional, através de um programa nacionalista gigantesco a que eu chamei, nos meus estudos, a campanha do bacalhau, por analogia com a campanha do trigo. É muito interessante esse programa. Ele é arquitetado pelo Pedro Teotónio Pereira nos anos 30 – por Salazar, do ponto de vista das ideias económicas, até um pouco antes. E depois é regulado o negócio importador, controlado o abastecimento através da Comissão Reguladora do Bacalhau, que é criada em 1934, e do Grémio dos Pescadores, que é dominado pelo almirante Tenreiro, tal como são dominadas todas as mútuas e cooperativas, e é criado um império administrativo e burocrático de organizações corporativistas e organismos económicos para regular um setor que historicamente era deficitário, no qual dependíamos do exterior. O certo é que a campanha do bacalhau do Estado Novo dá resultados económicos porque Portugal, em 1934, produzia 11% do bacalhau que consumia; e nos anos 60 produzíamos 70%. Há uma efetiva substituição de importações, numa altura que não havia problemas de acesso aos recursos, havia abundância, não havia restrições no direito do mar e o Estado subsidiava os fatores de produção, nomeadamente os navios e os seguros.

Isso correspondia, tal como a campanha do trigo e do congelamento das rendas, a uma política de manter barata a alimentação e a habitação, para assim manter baixos os salários?

Exatamente. O objetivo, do ponto de vista económico, era tornar barata a subsistência através de uma proteína de largo consumo que fosse um fator de bloqueio dos salários e de financiamento da paz social, que é uma questão muito importante para a lógica autoritária do Estado Novo. É curiosa a gestão política da tabela de preços, eu estudei tudo isso: depois da ii Guerra Mundial, quando é instituído o fundo de abastecimentos, que era o mecanismo que financiava os preços, de 1948 até 1964, não se mexe nos preços, que o Salazar não deixava, ou seja, a tabela é congelada para que a paz social do pós-guerra fosse garantida. Só com a liberalização do comércio é que a tabela cai, em 1967.

Nos anos 60 produzíamos 70% do que consumíamos e é em 1962 que se dá o pico das capturas de bacalhau, um milhão e 800 mil toneladas.

Exatamente. Portugal, em 1958, torna- -se o primeiro produtor de bacalhau salgado seco. Há toda uma propaganda do êxito da campanha do bacalhau, dessa afirmação do mercado internacional, do qual Portugal era historicamente muito dependente. No início dos anos 60 há continuação dessa afirmação, mas a partir daí começam os problemas de ordem externa, como a mudança do direito do mar, e a dificuldade interna para arranjar tripulações para os navios de pesca à linha, que era uma técnica de pesca arcaica e muito violenta do ponto de vista do trabalho a bordo. E é muito interessante que este setor caia abraçado ao Estado Novo: os últimos três grandes navios de pesca à linha, que eram o símbolo épico da frota branca, vão pela última vez ao mar para pescar o bacalhau em 1974. Há uma coincidência absoluta. Penso que a campanha do bacalhau, mais até que a do trigo, é o projeto mais emblemático e com maior sucesso do regime na sua lógica, porque ela perdura até ao fim. A campanha do trigo são sete ou oito anos.

Os portugueses continuam a consumir cerca de 20% da produção mundial de bacalhau. De alguma forma, a nossa identidade tem muito a ver com o bacalhau.

Acho que temos muito. Se fizermos um estudo identitário, o bacalhau será provavelmente o produto mais identificativo dos portugueses e da forma como até nos veem de fora. Isso é muito interessante: é quase caricatural que um peixe que não habita nas nossas águas tenha sido objeto de um processo de nacionalização cultural e de apropriação e é profundamente identificativo da cultura portuguesa, sobretudo uma cultura alimentar, que tem este fenómeno bizarro de um consumo elevadíssimo de peixe por causa do consumo do bacalhau – são cerca de 30 quilos per capita ao ano. É um consumo muito elevado do bacalhau salgado seco, um consumo que foi até reanimado por causa do aumento do turismo, precisamente por causa dessa associação simbólica, e é um fenómeno muito singular, à escala internacional, de apropriação e persistência no tempo. Quando houve programas de substituição de importações de bacalhau por peixe congelado, eles nunca foram eficazes porque resultaram sempre numa sobreposição de consumos, e não numa substituição. Basta lembrar daquela campanha de televisão dos anos 70 da “menina pescadinha”, que foi uma campanha fantástica cujo o rosto era o Artur Agostinho e que tinha como objetivo, no contexto da liberalização do bacalhau em que os preços subiam, substituir consumos por pescada. Isso não resultou. É muito interessante que a resiliência do fator cultural seja aqui muito forte, neste caso.