Alexandre O’Neill (1924-1986) foi-se embora, morreu há mais de três décadas. Mas a poesia e a prosa que escreveu ficaram, ainda cá estão, vivinhas da costa. Uma evidência em duas frases feitas que tresandam a banalidade. E logo escritas a respeito dele, que jamais deu tréguas ao lugar-comum. Se pegava em algum, era para lhe torcer o pescoço, vibrar-lhe uma grande marretada e lançá-lo pelas ruas da amargura, se não com muito humor, com suprema ironia. Ele próprio reconheceu, em O Diabo que vos carregue (1982), "colocar a tónica num certo aspecto subversivo, desconstrutor da poesia que venho conseguindo desfazer". Acreditava mesmo "na existência do Diabo" e era – ou, pelo menos, confessa que chegou a ser – "um Diabo raisonneur, trocista, sarcástico, demolidor".
Quase sempre "recalcou o lírico que lhe assomava à lágrima", como escreveu no Retrato (sem boné) de Mário-Henrique Leiria, talvez revendo-se na frase. Embora tenha "tropeçado de ternura" em Um Adeus Português, belíssimo poema que se lhe agarrou à figura como lapa à rocha. As circunstâncias em que o escreveu, embora atenuantes, não o isentam de culpa. em A história de um poema, confessa que estava a sofrer "pressões inacreditáveis" por parte da família para não "ir atrás da francesa", a sua querida amiga Nora Mitrani, que o desafiara a "ir ter com ela a Paris, onde vivia". Chegaram ao ponto de meter uma cunha à PIDE, onde O’Neill foi interrogado pelo subinspector Seixas, em "linguagem descomedida", ficando sem passaporte por muitos e maus anos.
Extraordinário é que um verme, como este Seixas, tenha entrado a rastejar para um rodapé da grande poesia portuguesa. Mas foi assim que O’Neill escreveu o poema, alimentado por "uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes". Poema que, "ingénuo como é, tem realmente a força do nojo e do desespero combinados com um derrame/contenção sentimental" que – diz ele – não mais igualou. O que é igual ao litro, se lermos e relermos as admiráveis páginas de poesia e prosa que foi escrevendo pela vida fora e que resistem pela morte dentro. A escrita de O’Neill é uma inesgotável mina de ouro a céu aberto. Mais do que exegetas e mediadores, reclama garimpeiros e exploradores da boa Literatura, para gozo dos sentidos e proveito do espírito.
"Lede tudo, sobretudo as obras sobre as quais haveis lido tudo", aconselhava ele enquanto fustigava "a bem-pensância nacional, sempre á procura de tralha para mobilar e decorar a sua cabeçorra". O’Neill repudiava a "ideia de que escrever é uma actividade chique e mobiladora". E depois? A resposta, lá do fundo do século XIX (1833) e traduzida por ele, dava-a o italiano Giovanni Gioachino Belli, um dos seus poetas preferidos: "Depois o ofício, o jejum, a trabalheira, / a pensão a pagar, as prisões, o governo, / o hospital, as dívidas, a crica, / o sol no verão, a neve no Inverno…/ E por último – e que Deus nos abençoe! – vem a morte e acaba no inferno". Sem estátua do comendador, se fazem favor!
2. Sempre fui um o’neillista, confesso, ou seja: um adepto de Alexandre O’Neill. Pelo menos desde quando me atrevi, incitado pelo Gastão Cruz, a dizer em público “Um adeus português”, era ainda um ‘rapazelho’, muito ‘verdes anos’, a apanhar bonés na vida. E não há-de ser agora, que já palmilho a casa dos 70, que vou deixar de o ser. Burro velho não aprende línguas nem vira casacas.
Esta advertência é indispensável para se perceber melhor a grande incomodidade e a imensa desdita de quem vive em "ALUMINIÓPOLIS". Já lá vão mais de trinta anos, o poeta avisou em prosa: "O alumínio está a expandir-se assustadoramente". Mais: "Por estes andares, Lisboa vai ter, não tarda muito, poentes e nascentes de alumínio". Já tem. Todo o país se passou, paulatinamente, para o alumínio. Em sentido real e figurado.
A estética do alumínio, com a sua caixilharia refulgente, saltou do urbanismo e da arquitectura de marquise para a política, a literatura, a música, os jornais, a rádio e a televisão de cordel. O "mau gosto gritante que o alumínio inculca" não é privilégio de mestres d’obras e edis pragmáticos. É democraticamente partilhado por demagogos de feira, políticos de plástico, escrevinhadores a peso, publicistas a metro, apresentadores à hora, repórteres ao minuto, pantomineiros sem eira nem beira, aves canoras em saldo.
A estética do alumínio aposta a fundo na expressão de realce despropositada. É o frigorífico na sala de jantar com naperon em cima. É a inútil multiplicação de rotundas, cada qual com o seu mamarracho ao centro. É a bossa de camelo incrustada num corpo escorreito, que fica marreco. É o discurso da banha-da-cobra, que despreza a subtileza. É o riso alarve – "imediatamente muito forte, por ser colectivo e militante", escreveu Nuno Bragança – que despreza a ironia. É o sonho dos néscios e o pesadelo dos incautos.
"Verdadeiros berros" e "autênticas fífias de alumínio" brotam insidiosamente de inúmeras fachadas, aproveitando todas as "janelas de oportunidade" para se expandirem e encaixilharem as suas marquises no nosso quotidiano de cidadãos desprevenidos. Já se sabe que uma larga maioria gosta e uma curta minoria não. Por isso, a pergunta do poeta lá se vai repetindo com ironia e desalento: "Então não é verdade que estamos kitsch?".
A democracia tem perversidades destas. É como "uma mulher em forma de S, de roupão florido e canteiro de papelotes à cabeça". Se estivesse vestida de papel de jornal "não faria mais restolho". É assim "porque é mais prático e, o que é pior, para tantos e tantos, MAIS BONITO", lamentava Alexandre O’Neill. Mas também porque assim fica mais barato e é mais lucrativo. Indiferente ao gosto, que o bezerro d’ oiro o que quer é facturar.
O o’neillismo é um pessimismo, como já perceberam. Mas não se confunde com resignação cristã. Mantém a lucidez e a ironia. Chateia-se solenemente. Protesta em voz alta. Indigna-se e não se conforma com a expansão do alumínio, reclamando o recurso a materiais mais nobres. Sem se iludir, todavia, quanto ao futuro da construção civil, dos mestres d’obras e dos capatazes, neste cada vez mais metafórico país encaixilhado em alumínio. Nem, aliás, quanto ao futuro da Pátria, da República, da Europa e do Mundo…
3. Há tempos escrevi que, se andarmos à cata de velhos clássicos da literatura para oferecermos aos filhos ou a jovens amigos, depressa constataremos quão raros são os oásis que ainda restam no deserto de escaparates e prateleiras das livrarias, atravancadas pela contínua invasão das "bestas céleres". Era com esta divertida expressão que Alexandre O’Neill designava "o fabrico e o consumo desenfreado de um produto que por acaso se chama livro", e que é mais conhecido e popularizado, há já várias décadas, pelo termo best-seller.
Teremos muita sorte se um velho clássico tiver sido reeditado e estiver incluído na lista de "novidades" do mês, da quinzena ou, mesmo, só da semana. Se não, é escusado andar à cata dele pelas livrarias, porque já não está à venda. A produção e o consumo de bens culturais, como agora se diz, provoca o envelhecimento acelerado e fulgurante, não só dos velhos clássicos da literatura mas também das obras dos melhores escritores do nosso tempo, se elas não tiverem a sorte de entrar para os "topes" de vendas.
Alexandre O’Neill fazia uma distinção entre "topes" de vendas como O Nome da Rosa, de Umberto Eco, ou as Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, e "bestas céleres" como Love Story ou O Aeroporto, que já nem sei quem escreveu. A comparação actual poderia ser feita entre "topes" de vendas como A Mancha Humana, de Philip Roth, ou Amigos para Sempre, de John Le Carré, e "bestas céleres" como I’m in love with a Pop Star, de Margarida Rebelo Pinto, ou A Bruxa de Portobello, de Paulo Coelho, a infinitas léguas da literatura. Sem esquecer Como perder peso num abrir e fechar de pernas, de Richard Smith, ou Isso agora…não interessa nada, de Teresa Guilherme. Isto, sem mesmo citar a cabazada de códigos, cabalas, enigmas, segredos e profecias nas prateleiras da moda.
Fruttero & Lucentini, famoso par de escritores italianos co-autores de excelentes romances e crónicas, já se queixavam, há mais de 30 anos, do facto das livrarias se parecerem cada vez mais com os quiosques de jornais, aonde ninguém vai à procura dos diários da véspera ou das revistas do mês passado. Numa das crónicas do livro em que deploram a insuportável "predominância do cretino" (La prevalenza del cretino), citam Schopenhauer em 1851: "Enquanto as pessoas, em vez de lerem o melhor de todos os tempos, preferirem sempre e somente as últimas novidades, o século afundar-se-á cada vez mais nas suas próprias porcarias. O novo raramente é bom e o bom só se mantém novo durante pouco tempo".
Não serei assim tão pessimista. Mas lamento que as "bestas céleres" de que falava Alexandre O’Neill removam a boa literatura das estantes das livrarias. E não me sinto nada à vontade nos snack luncheons de lançamento de novos livros. P.G. Wodehouse achava "medonho" ver os fotógrafos a obrigar um autor a posar de livro na mão. O que ele não diria se folheasse a revista em que uma autora lusa de "bestas céleres" revela a que cabeleireiro vai, que sandálias calça e o desodorizante que usa. Bem mais difícil é escrever como Stendhal…
Mas não quero encerrar este breve capítulo sem mencionar o insólito e tragicómico conto que Alexandre O’Neill magicou "com vista ao próximo Natal". São os Exercícios de Auto-Apoucamento praticados por Valério, o Lérinho da sua Quinhas, que vai até ao ponto de se enfiar por "uma perna de calça sustentando-se em pé, sem, aparentemente, homem lá dentro". É deste modo que Lérinho julga estar a preparar uma divertida surpresa para o seu filho, o Necas, auto-apoucando-se na "amurada do sapato" de Natal. Mas a magia dá para o torto, e acabamos por ver um "órfão vivo" – assim se pode considerar o pobre Necas – horrorizado e a soluçar no regaço da mãe: "Sa… Sa… Saiu-me o… o… o pai no sa… sa… sapato!". E a Quinhas não tem outro remédio senão prometer ao filho que "o pai voltará a crescer, a crescer"…
4. Há mais de meio século, vejam bem, já o Alexandre O’Neill perguntava em verso: "Pátriazinha iletrada, que sabes tu de mim?". E ele próprio respondia: "És o esticalarica que se vê". Infelizmente, o "esticalarica" morreu há três décadas, a "pátriazinha" continua "iletrada" e a poesia dele não goza dos mesmos favores públicos que, por exemplo, a do Fernando Pessoa. E, no entanto, se há poeta português do século XX que nos tenha compreendido melhor – e que mais nos ajude a perceber a "pátriazinha" – é precisamente Alexandre O’Neill. Mas a "pátriazinha" não gosta de se ver ao espelho, o Pessoa deixou os baús cheios e o O’Neill está longe de ser parasitável.
Não sou crítico literário e, portanto, não digo que um seja melhor do que o outro, embora ache que sim. Mas abordemos os estilos, recorrendo à actualidade europeia. O Pessoa era bem capaz de ver no euro o Mostrengo e em Bruxelas o Cabo Bojador, conferindo assim dimensão de epopeia à caminhada de Portugal pela moeda única. Já o O’Neill era mais capaz de recorrer à ironia incitando-nos a seguir o euro tal como um dia ele seguiu um cherne. Em vez de "sigamos o cherne, minha Amiga!" era capaz de ser "sigamos o euro, meus Amigos!". E se substituíssemos "desejo" por "paciência", "fantasia" por "convergência", "amor" por "humor" e "alegria" por "pejo", a coisa era bem capaz de ficar assim: "Sigamos o euro, meus Amigos! / Desçamos ao fundo da nossa paciência / Atrás de muito mais que a convergência / E aceitemos, até, do euro um beijo / Senão já com humor, com muito pejo"…
Claro que, além de patético, este exercício que estou a fazer é perfeitamente inútil. A "pátriazinha" continua a ler pouco e mal, cada vez mais sentada a ver televisão, preferindo, por exemplo, o Tony Carreira ao Zeca Afonso. Por isso até foi um acto de coragem a reedição pela "Relógio d’Água", em 1997, do mais belo livro de poemas de Alexandre O’Neill, porventura um dos mais belos da poesia portuguesa do século XX: "No Reino da Dinamarca". Acredito que o O’Neill não venda a metro, como o Pessoa, e que a sua obra não encha as prateleiras da malta VIP. Mas aconselho vivamente a sua leitura. Sobretudo aos mais novos. Para perceberem melhor o país em que vivem, de onde vêm e do qual são filhos. Logo verão que são "Filhos da Nação"…
Ninguém, como Alexandre O’Neill, percebeu melhor o que é "a martelada na cabeça / a pequena morte maliciosa / que na espiral das sirenes / se esconde e assobia". Ninguém, como ele, descreveu tão bem "o sono centenário / mal vestido mal alimentado / para o trabalho" de todos os que "erraram pelos caminhos / já de antemão errados" e "carregaram o corpo, / o corpo e seus cuidados"… Mas também ninguém, como ele, foi capaz de ser tão divertido a tirar o país de cuidados: "Este país, enquanto se alivia, / manda-nos à mãe, à irmã e à tia, / a nós e à tirania, / sem perder tempo nem caligrafia". É verdade que nunca fomos fortes na leitura e ainda menos o somos na caligrafia. E por isso ele dizia: "Embezerra, país, que bem mereces"…
Um poeta assim não se mostra lá fora. Vai contra o optimismo oficioso que o país afivela quando a si próprio se comemora. A melancolia misteriosa e gigantesca da poesia de Fernando Pessoa é muito mais razoável, porque é mais irreal. Já a tristeza cabisbaixa de que fala a poesia de Alexandre O’Neill, magoa-nos que se farta e não rima tão bem com os "heróis do mar" e o "esplendor de Portugal". Por alguma razão Fernando Pessoa é o poeta de todos os partidos e de todos os regimes – e o Alexandre O’Neill não. A poesia do Pessoa é virtual. A do O’Neill não dá pretextos para fugir do real. O que até parece um paradoxo, num poeta que começou por ser surrealista.
O poeta Alexandre O’Neill "é todo cotovelos", como ele próprio diz no tragicómico poema "Albertina" ou "o insecto-insulto" ou "o quotidiano recebido como mosca". E um poeta que "é todo cotovelos" e recebe o quotidiano "como mosca" incomoda muito e irrita que se farta. Embora também seja autor, como já se disse, de um dos mais belos poemas jamais escritos em língua portuguesa – "Um Adeus Português" – em que ele acaba a "tropeçar de ternura". Nem que seja só para ler este admirável poema, vale a pena entrar "No Reino da Dinamarca", se é que ainda está à venda mais de 20 anos depois. Reino esse que é, como já adivinharam, Portugal – uma questão muito "shakespeariana" que o poeta tinha consigo próprio. E que alguns de nós continuam a ter.
Para além da metáfora – e estou já a terminar este retrato – convirá dizer que talvez só António Vieira e Camilo Castelo Branco terão influenciado e renovado tanto a língua portuguesa como o fez Alexandre O’Neill. É verdade: este "esticalarica" e "caixadóclos" era mesmo um grande poeta!