Netflix. É uma Casa de Papel portuguesa, com certeza

Netflix. É uma Casa de Papel portuguesa, com certeza


Quinto episódio da série da Netflix de que se fala abre com “Fado Boémio e Vadio”. Fadista setubalense conta toda a história e revela ainda não ter recebido um cêntimo


Embora desconhecida do grande público, a sadina tem uma carreira de 28 anos entre o fado, o Festival da Canção, o teatro de revista e as marchas. Começou no TAS (Teatro de Animação de Setúbal) em 1990 como atriz e cantora. Foi segunda classificada na Grande Noite do Fado em 1992 e acabou em quarto lugar no Festival da Canção de 1994 com “Renascer de Um Trovador”, escrita por José Manuel Coelho. Trabalhou com Filipe La Féria na primeira e terceira temporadas do programa “Cabaret” da RTP. Convidada a integrar o elenco residente, declinou devido à escola e aos dois filhos. Na representação voltaria a trabalhar com Luís Aleluia nos espetáculos “Vira o Fisco e Toca o Mesmo”, “Show da Noite” e “Isto Só Visto”. Gravou os álbuns “Fados”, uma edição de autor de 1992, e “É Magia”, em 1993. O “Fado Boémio e Vadio”, incluído em “Casa de Papel”, com música de Nuno Nazareth Fernandes e letra de Henrique Amoroso, foi editado em 1996. Foi madrinha de marchas em Setúbal, cantou em casas de fado, deu concertos em Espanha e apresentou-se com regularidade nas quartas-feiras do Casino Estoril. Em 2014 celebrou 25 anos de carreira no Fórum Luísa Todi.

Piedade Fernandes estava em Setúbal a dar uma entrevista na qualidade de figura reconhecida da cidade quando a pergunta caiu do céu: “Netflix diz-lhe alguma coisa?” A fadista não conhecia a plataforma. Nem a “Casa de Papel”, a série de que se fala. “No quinto episódio, há um fado que deve ser da Piedade”, contaram-lhe. E era mesmo. O “Fado Boémio e Vadio” faz parte da banda sonora da entretanto finalizada primeira temporada. “Fui à procura no YouTube e encontrei. Fiz-me logo assinante. A série é fabulosa. Já vi os episódios todos. Estou ansiosa pela segunda temporada”, assume em conversa com o i. E reconhece: “De todas as canções, é das que mais dá nas vistas.”

“Há um fado que é cantado, há um outro que é sentido”, é o primeiro verso da canção. Piedade Fernandes procurou o produtor Alejandro Bazzano para perceber os motivos da escolha. “[Os produtores] procuravam um fado. Era preciso um fado para ilustrar a cena dramática, mas um fado ameno. Por isso, escolheram este fado”, explica. “Se calhar havia fados que se enquadravam melhor”, admite, mas “aquele estava mais à mão. Eles gostaram muito da minha voz. Como não é muito dramático, ameniza a cena”, descreve.

Professora de Educação Visual na EB 2/3 de Aranguez, em Setúbal, foi rapidamente descoberta pelos alunos. “É mesmo a setora?”, perguntaram “os mais pintas”. É, e para todo o mundo. “Geralmente, nunca sei de nada. São pessoas que me avisam. Já tinha acontecido num anúncio da Audi, em filmes americanos…”

O “Fado Boémio e Vadio” não é virgem em televisão. “Tem sido muito utilizado”, conta. “Já tinha feito parte da banda sonora da ‘Baía das Mulheres’ e noutras novelas.” Piedade Fernandes puxa pela memória e cita de cabeça “[Bem- -Vindos a] Beirais”, “Amor Maior” e “Jogo Duplo”. Na caixa de mensagens chovem mensagens de todos os meridianos mas, até agora, o retorno foi somente esse: o prestígio, porque a fadista ainda não recebeu um cêntimo pela utilização da canção numa série de alcance global.

Para explicar este estranho fenómeno, é necessário recuar a 1996, ano em que “Fado Boémio e Vadio” foi gravado e, não menos importante, registado.

“Gravei o álbum com um produtor belga que tinha uma produtora chamada Caracal. Ele gostava muito de me ouvir. Era amigo do Nuno Nazareth Fernandes e do Sidónio Pereira (compositores da canção). Convidaram-me para cantar, pagaram-me e eu cantei. O Thimoty e o Sidónio fizeram um documento que assinei em como prescindia dos direitos”, explica. Piedade Fernandes foi registada como intérprete e procura agora vias para obter retorno da exposição. “Os direitos de publishing estão com a Universal. Queremos falar com eles para regravar o álbum. Não estou a receber nada! Já falei com a GDA (Gestão dos Direitos dos Artistas)” para perceber quais os mecanismos ao dispor. Ainda assim, realça, “em Portugal, posso vir a receber alguma coisa por ser intérprete, mas a minha preocupação não é o dinheiro, são os espetáculos”.

Desconhecida do grande público, tem uma carreira a caminho dos 30 anos (celebrou 25 em 2015, no Fórum Luísa Todi) não só no fado, mas também no teatro de revista e no Festival da Canção (ver caixa). “Tenho um espetáculo montado. Venho do teatro. Quando se trabalha com [Filipe] La Féria, Henrique Feist, Simone, Luís Aleluia, aprende-se muito. Como sou professora, também consigo ser boa aluna. Posso não conseguir fazer, mas aprendi como se faz”, assume. E o sonho de um dia vir a dedicar-se a tempo inteiro à música não morreu. “Estou a ficar um bocado cota, mas sou capaz.”

“Criei o meu canal de YouTube. O meu marido, normalmente, filma as minhas atuações e divulga através do YouTube e do Instagram”, refere. “Vou tentar tirar os meus dividendos. Espero que me apareça mais trabalho. Houve uma fase da minha vida em que dava concertos sozinha em Espanha. Fui cantar a Cinfães e o técnico de som trabalhava para um empresário espanhol que procurava uma fadista menos conhecida. Só que, na altura, não tinha Facebook, só Myspace e Hi5. De 2000 a 2011 cantei de norte a sul de Espanha. Depois veio a crise, a filha desse empresário queria bandas de rock e propuseram-me playbacks. Não aceitei. Gosto de fazer as coisas por paixão”, faz questão de vincar. E lembra esses tempos. “São algumas das melhores recordações da minha vida. Dava aulas e cantava à noite em Lisboa e ao fim de semana em Espanha.”

O sonho nunca esteve tão perto de ser real como quando trabalhou com Filipe La Féria no programa “Cabaret” da RTP. “Só não fiquei no elenco fixo por causa da escola. Não tive uma máquina atrás de mim e tinha dois filhos. Tenho casa e preciso de comer.” Talvez a “Casa de Papel” tenha reaberto a porta do sonho.