Nos últimos 60 anos, o direito internacional público foi palco de constantes mudanças na sua ação e na sua missão de orientador jurídico da relação inter-Estados. Hoje é claro para todos que o direito internacional já não se confina à sua função reguladora nas relações interestaduais; hoje, ele é simultaneamente regulador e potenciador das relações humanas e criador de direito no que tange às aspirações globais da comunidade em relação ao indivíduo e deste em relação à comunidade.
Há uma interdependência insofismável entre ambos, na medida em que um não existe sem o outro, mas também no sentido de os interesses globais não se sobreporem abruptamente aos direitos individuais, colocando em causa a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos.
A sílaba tónica do direito internacional público mudou nos últimos anos. Há hoje uma preocupação central da sua ação. Uma neocentralidade que serve de batuta jurídica e que se consome com os direitos das pessoas, com a sua proteção num sentimento comum a toda a comunidade internacional e que emerge do desafio de Kofi Annan para um novo conceito de soberania assente numa dupla responsabilidade dos Estados (interna e externa), que introduz um novo conceito de intervenção e um certo mea culpa da comunidade internacional pelo seu falhanço nos conflitos recentes, como na Bósnia, no Ruanda ou em Timor-Leste: a emergência do direito internacional humanitário e a sua manifestação na responsabilidade de proteger.
Ademais, implica que a dimensão da função externa da soberania dos Estados ganhe uma latitude superior onde se inclui a proteção de direitos de terceiros sobre outros assuntos de direito e de interesse global da comunidade internacional – uma latitude erga omnes, ou seja, oponível a terceiros, de resto já aflorada e, em parte, garantida quer pela decisão do Tribunal Internacional de Justiça no caso Barcelona Traction, quer no draft sobre a Responsabilidade dos Estados pela Prática de Atos Ilícitos Internacionais elaborado pela Comissão de Direito Internacional da ONU.
Mas esta responsabilidade erga omnes constitui um terrível dilema. A seletividade do Conselho de Segurança na aplicação, decisiva de resto, desta norma emergente, quanto à preservação e defesa intransigente dos direitos humanos, ainda é demasiadas vezes aparente. Amiúde, a sensação com que se fica considerando a multiplicidade de fenómenos violentos e atentatórios dos mais elementares direitos é que a comunidade internacional resiste a assumir na sua plenitude o lugar que lhe está reservado. Afinal, em tempos de segurança multidimensional que conduzem a que o indivíduo e o coletivo assumam o mesmo grau de prioridade, este dilema torna-se maior e induz uma interrogação ainda maior e de incerta resposta. Com que fundamentos, e em que situações, se obriga um discurso multidimensional de segurança?
Mais: deve a comunidade internacional continuar a orientar a aplicação desta norma à prática internacional em relação à proteção de civis contra violações graves de direitos humanos – genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade – ou deve expandir-se o conceito além deste escopo?
O que se está a passar na Síria é demasiadamente grave para que o Conselho de Segurança apenas se manifeste com a imposição de um cessar-fogo que, de resto, foi ignorado e violado em menos de 24 horas. A comunidade internacional tem obrigação de agir para além do fito diplomático. Tem de agir militarmente.
A ação do Estado sírio falhou no seu próprio território. Falhou na defesa e na proteção de direitos civis que colocam em causa direitos humanos. Cabe à comunidade internacional recorrer a ações militares com uso exclusivo de proteção de pessoas sob ameaça, tornando-a um imperativo moral da concretização plena da neocentralidade do direito internacional: a proteção das pessoas e dos direitos humanos.