Carlos Martins. “É muito mais difícil fazer hoje contratos de substituição do que no tempo da troika”

Carlos Martins. “É muito mais difícil fazer hoje contratos de substituição do que no tempo da troika”


Carlos Martins assinala hoje cinco anos à frente do Santa Maria. O resultado é positivo, diz, mas há problemas a resolver, das demoras das Finanças


Carlos Martins completa hoje cinco anos à frente do Centro Hospitalar Lisboa Norte. Em altura de balanços, o ex-deputado do PSD lembra que recusou seguir a receita estritamente financeira e o tratamento não correu mal: o Hospital Santa Maria passou de prejuízos mensais de 10 milhões de euros para resultados positivos. A frustração é não ter resolvido a dívida, a maior do SNS. A dez meses do fim do segundo mandato, acredita que há temas incontornáveis, como avançar com a exclusividade. Quanto ao futuro, recusa a ideia de que o hospital é a “antecâmara” do cargo de ministro da Saúde – o que seria um trajeto que teria em comum com Adalberto Campos Fernandes. Mas deixa assente desde já que, caso o convite surja um dia, não será ministro a qualquer custo.

Que memórias guarda dos primeiros dias em Santa Maria?

Costumo dizer que a vida é feita de sinais e no primeiro dia decidi dar um sinal à instituição. Chegámos e tivemos uma reunião do conselho de administração com 44 pontos na ordem de trabalhos. Quisemos dar um sinal de continuidade, de que a equipa que assumia funções num momento particularmente difícil para o país sabia ao que vinha e o que era preciso fazer. Sentámo-nos às 9h30 e começámos a trabalhar.

Vindo do Algarve, da política – foi deputado do PSD e secretário de Estado – gerou muitos anticorpos?

Terei eventualmente suscitado dúvidas, a reação de que talvez não fosse a pessoa certa para o lugar. Não era médico, não era professor da Faculdade de Medicina, não era administrador hospitalar de carreira, tinha de facto sido deputado e feito uma parte importante da minha vida pública com fortes ligações à política, de que me orgulho. Reconheço que havia uma atitude não de desconfiança mas de expectativa, se calhar em alguns segmentos de alguma desilusão.

Sentiu algum tipo de conspiração?

Isso não. Senti a tal expectativa. E importa recordá-lo, porque é justo, que o diretor da faculdade de então, Fernandes e Fernandes, não me conhecendo, em momentos cruciais desse primeiro ano saiu duas ou três vezes publicamente a apoiar decisões que estávamos a tomar. Foi um sinal importante à casa.

A austeridade é página do passado?

A austeridade não é uma página do passado. É uma afirmação perentória e explico porquê. O país atravessou um período longo extremamente difícil, foi uma década mais ou menos de retração da economia. O culminar é a ajuda externa, a troika, mas não aconteceu de um dia para o outro. Tal como não recupera de um dia para o outro. Quando digo que a página não está fechada é porque a saúde é um setor extremamente sensível a estas conjunturas de menor disponibilidade de recursos financeiros. Ao contrário de outras instituições, não podemos decidir fechar temporariamente ou reduzir horários para conter custos. Qualquer desajustamento de meios financeiros e redução de investimento em recursos humanos, em tecnologia, sente-se ao longo de anos.

Até quanto se sentirá esse impacto?

Na minha opinião, até 2020, independente do muito que seja feito. Houve uma visão financeira e não económico-social. É muito fácil tentar conseguir resultados dizendo que se corta aqui e ali. Dito isto, o caminho no Centro Hospitalar Lisboa Norte não foi necessariamente esse. Quando chegámos houve um acordo com a tutela: íamos ter uma visão económico-social e não simplesmente cortar x aqui, fechar o Pulido Valente, despedir.

Mas teve de bater o pé por isso?

Não, foi um entendimento. Tive uma primeira abordagem de Paulo Macedo a 27 de dezembro de 2012 e só aceitei no final de janeiro. Antes quis estudar os dossiês, falar com quem tinha de falar. Perguntei a mim próprio se teria condições do ponto de vista pessoal, da minha experiência, para dar a volta à situação da instituição, que era má: 300 milhões de dívida acumulada, um prejuízo de 10/11 milhões de euros mês e uma perda de atividade de 38%. 

Caso corresse mal, com a lei dos compromissos que tinha sido implementada, podia ser responsabilizado disciplinarmente e até criminalmente pelo incumprimento do orçamento.

Responsabilizado a título pessoal!

A sua mulher tentou dissuadi-lo?

Bom, o que me foi dito nesse contexto familiar foi que, de facto, o desafio era grande mas se eu achava que tinha condições, devia aceitar… Depois de analisar as condições objetivas em termos de apoio político, a equipa e as potencialidades da instituição, aceitei. 

Diz que os impactos da austeridade ainda se sentem. Tirando as ondas de choque, há mais meios?

Temos um conjunto de situações positivas. A que me orgulha mais é que a instituição conseguiu reagir e, partindo de dificuldades reais, que eram não termos nem um euro para investimento e a condição financeira que já referi, recuperámos atividade assistencial, conseguimos melhorar a acessibilidade à instituição, aumentar a complexidade dos tratamentos, a cirurgia em ambulatório, o número de consultas, o número de partos. Recuperámos até a área de influência: não recuperámos ainda os 38% que tínhamos perdido de população mas 30%.

Fala das pessoas que tinham passado por exemplo,  a ir à PPP de Loures?

Sim, com a abertura do Hospital Beatriz Ângelo perdemos área de influência e agora estamos a ir buscar pessoas de outras freguesias que não conseguiram encontrar resposta noutras instituições, por exemplo que antigamente eram da área geográfica do Amadora-Sintra. 

Segundo os últimos dados, em outubro de 2017 o centro hospitalar continuava com uma dívida de 300 milhões.

Tínhamos o privilégio de ser visitados anualmente por alguém da troika, normalmente o FMI…

Queriam saber que unidade era esta que representava a maior fatia da dívida do SNS?

Sim e é a situação mais desagradável que tive e ainda hoje tenho, que é ter herdado uma dívida de 300 milhões e não a ter conseguido resolver. Penso no impacto que teriam esses 300 milhões se fossem abatidos da dívida pública em termos de credibilidade externa, de injeção na economia e também na vida da instituição. É um contributo negativo que não gostávamos de dar ao país mas demos.

Como se resolve?

Quais eram e são as duas únicas soluções… quer dizer eram, só restou uma. Por um lado seria o fecho de uma das unidades do centro hospitalar, o Pulido Valente. Entregá-lo à Estamo como outros fizeram e assim reduzir o número de trabalhadores para 5000, abatendo 1500 postos de trabalho. Esta era a solução numa visão financeira. Não foi fácil não ir por aí: se há momentos de frustração foi, nos primeiros meses em funções, olhar para os resultados e ver que tínhamos perdido 10 milhões, 9 milhões, parecia que nada acontecia. Agora o caminho que seguimos de procura de eficiência teve resultados: nos últimos dois anos tivemos pela primeira vez resultado líquido positivo e um EBIDTA positivo. O problema é que não houve condições para amortizar a dívida. Para isso precisávamos de negociar um plano de reequilíbrio financeiro – mas como fazer isso quando o país estava com um memorando de entendimento e sob ajuda externa? Não era possível. Com o atual governo voltámos a insistir. 

Mas continua a não haver dinheiro?

Conseguimos, através de eficiência de gestão, comprometermo-nos a injetar 100 milhões de euros e a pagar 50 milhões por ano de dívida atrasada desde que o acionista – Saúde e Finanças – em partes iguais, também o faça. E depois também nos devem dinheiro a nós. O somatório das três partes – a nossa taxa de esforço, o esforço dos dois acionistas  e o apoio do governo em termos da resolução de alguns créditos – podiam fazer com que abatêssemos 250 milhões.

Falta a intervenção do Estado?

Sim. Se me perguntar qual é o motivo de frustração daqui a 10 meses quando terminar o mandato é não ter conseguido a aprovação do plano de reequilíbrio financeiro e não chegar ao fim deste mandato com as contas equilibradas. Consigo ter pelo terceiro ano as contas equilibradas no exercício, mas com a dívida. E é uma injustiça: com o que arriscámos e alcançámos, devíamos ter outra atitude da parte da estrutura acionista.

Com resultados equilibrados, quer dizer que não estão – como se diz do SNS – subfinanciados?

Há uma questão de justiça: há quem diga que recebemos “ajuda financeira”, subsídios, até pelo facto de eu ter vindo do gabinete de Paulo Macedo… 

Que teria ido para o hospital com uma linha de crédito aberta…

Sim. Quem conhece bem Paulo Macedo jamais o poderia dizer. Eu vim sem qualquer cheque ou garantia. Agora, disse que precisamos de estímulos: se produzirmos mais, até pela assistência aos PALOP e estrangeiros que estão na capital, precisamos de adendas ao contrato programa e isso foi permitindo resultados positivos. O atual governo, nessa mesma linha, também tem autorizado adendas ao contrato-programa e a nossa produção adicional tem sido compensada. Claro que ainda não é tudo compensado: por exemplo os 25 milhões de euros que gastamos na formação de internos.

Portanto, há subfinanciamento mas tem havido alguns remendos.

Eu não uso a palavra subfinanciamento, nunca usei nestes cinco anos. O que há é um desajustamento no financiamento da atividade e foi por isso que lutámos sempre: por explicar que temos um determinado contrato-programa para uma determinada atividade mas fazemos muito mais. E das duas uma: ou continuamos este rumo ou é preciso que então haja alguém que faça essa atividade. Nós podemos fazê-la, com compensação. Já tivemos momentos em que entre o contrato-programa e a atividade real havia um desfasamento na ordem dos 75 milhões de euros. Mas eu luto contra a fatalidade do subfinanciamento com a ideia de que quanto mais trabalharmos, mais conseguiremos ter a compensação financeira. Recuso-me a analisar os problemas da instituição hoje, ontem ou amanhã simplesmente lançando por cima deles mais meios financeiros. Quando cheguei cá referi várias vezes a forma do “m ao cubo”: fazer mais e menor com menos. E não é com menos dinheiro: é com o mesmo dinheiro tratarmos mais doentes e melhor.

Ainda há ineficiências?

Há sempre oportunidades para fazer melhor. Estamos agora a arrumar um dossiê importante que é o Pulido Valente: estava moribundo quando chegámos, com obras paradas, edifícios degradados, a atividade reduzida em 50%. Agora encontrámos um rumo. Há 10 milhões de obras em curso, outros 10 milhões previstos, terá unidades de saúde familiar que vão servir 30 mil pessoas.

Tem sido um processo com críticas. Implicou menos vagas no hospital.

Tenho uma dúvida muito grande quando vejo essas manifestações e as caras de algumas das pessoas que protestam e que, tendo tido responsabilidades, não se manifestaram no passado quando os serviços começaram a fechar em 2010, 2011, 2012; não se manifestaram quando constou que o Pulido era para fechar e entregar à Estamo e que mil pessoas podiam ser despedidas. Não deixa de ser estranho que no dia em que recebemos uma entidade que vai investir 3,5 milhões de euros haja um protesto.

Fala da entrada da Santa Casa de Lisboa para a criação de uma unidade de cuidados continuados.

Sim, vai abrir 44 camas que são essenciais para a cidade e famílias. A minha forma de estar será sempre pôr primeiro o interesse público. Enquanto estivermos conscientes de que estamos a defender o erário publico, nunca nos iremos subordinar a interesses pessoais, corporativos ou estados de espírito.

Os protestos em relação ao Pulido Valente não são isolados, tem havido críticas à falta de investimento, aos tempos de espera. Não sente isso?

No ano passado tivemos um conjunto de greves que tiveram um impacto real na nossa atividade. Não contesto o direito constitucional, mas costumava dizer que, continuando com este ritmo de greves e algumas por tempo indeterminado, temos oito ou nove meses de trabalho em doze. Isto não é de todo tranquilo.

Mas percebe o sentimento que leva os profissionais a fazer greve? Há uma deterioração da resposta?

Posso falar pela minha instituição. No Pulido Valente, os investimentos estão lá. Está lá o SICAD a funcionar, temos uma central de esterilização, vamos lá ter o maior centro de exames e análises do SNS (o Centro Integrado de Diagnóstico e Terapêutica) e os projetos têm sido profusamente comunicados. No Santa Maria, temos investido e temos obras estruturantes na instituição a serem estruturadas. Temos mais recursos humanos do que há cinco anos.

O ministro da Saúde diz que não há nenhuma questão com as Finanças. No dia a dia, é ou não complicado lidar com os prazos de resposta das Finanças para fazer contratações, comprar equipamento?

Já referi que optámos por uma visão diferente e não estritamente financeira. Há várias formas de austeridade e várias formas de cortes, os efetivos e táticos. Não sei qual é o pior corte: alguém dizer-me “não vais ter isto” ou deixar-me na expectativa meses e meses a fio.

Que é o que está a acontecer?

Há situações totalmente incompreensíveis. Temos uma grelha aprovada de investimentos com recurso a fundos comunitários e que resultou de dois anos de trabalho. E vou só dar um exemplo, se calhar o mais gritante: por falta de um documento das Finanças tivemos de anular um concurso e voltar a fazer um concurso público internacional. Estamos a falar da compra de dois aceleradores lineares, de praticamente duplicar a nossa capacidade de radioterapia, de 11 mil tratamentos, de 600 pessoas por dia.

Já tinham o dinheiro?

Tínhamos financiamento comunitário e precisávamos de uma declaração de conformidade das Finanças. Não ter existido esse papel fez com que tivéssemos anulado o concurso. Estamos a falar de demora, de novos patamares de decisões. Na saúde, tempo também é dinheiro e, pior do que uma má decisão, é uma indecisão. Causa frustração e custos acrescidos, esses sim são improdutivos. Quanto tempo perdemos com este atraso das Finanças nos aceleradores lineares? Seis meses pelo menos, se tudo correr bem.

A indecisão agravou-se neste governo?

No caso dos investimentos não posso fazer o comparador de forma justa porque na última legislatura não tinha fundos comunitários e um plano de investimento como agora. Agora na área das recursos humanos posso comparar e é muito mais difícil substituir pessoas até por licenças constitucionais, seja gravidez ou proteção à família, do que era.

Mais difícil do que no tempo da troika?

Não posso substituir sem autorização das Finanças se não fico sob alçada de responsabilidade criminal. No tempo da troika autorizávamos no limite e depois muitas vezes tínhamos as retificações.

Como justifica hoje estas limitações?

Não me faça essa pergunta a mim. Dou-lhe um exemplo mais recente: os oito enfermeiros especialistas em ginecologia e obstetrícia que queremos contratar [após a saída de 17] é um processo que não oferece dúvidas a ninguém e numa área bastante sensível. Fizemos todo o trabalho até com o cuidado de, no processo de seleção, conseguirmos que nenhum venha do setor público, vêm do privado ou PPP. Estávamos a contar estes enfermeiros ao serviço a 1 de fevereiro e ainda estamos à espera. O tempo de resposta na Saúde foi rápido.

Acha que o ministro das Finanças tem sensibilidade suficiente para perceber o que significam estes compassos de espera na vida do hospital?

Não sei porque nunca falei com o senhor ministro das Finanças nem com ninguém da sua equipa. A minha relação direta é com a Saúde, não é com as Finanças. Mas acho que é essencial que haja uma sensibilidade em termos de futuro diferente. A saúde tem de deixar de ser olhada como um custo e passar a ser olhada como um investimento. E dou-lhe um exemplo: investimos num cidadão sensivelmente 200 mil euros. 

Foi o custo do tratamento?

Sim, e dou este caso quando há outros que custam muito mais. Temos neste momento dois doentes que custam por ano um milhão cada um. Mas estou a falar no caso de um cidadão, com hepatite C, no qual investimos 200 mil euros, mas que pode regressar ao trabalho e dar emprego a dezenas de pessoas. Quem tenha apenas uma visão financeira dirá que foi um custo. Em regra não há muita disponibilidade para olhar para uma despesa como reprodutora de ganhos.

O presidente do IPO de Lisboa criticou os valores cobrados pela indústria farmacêutica na inovação.

Acompanho o raciocínio do meu colega e amigo Francisco Ramos, que é das pessoas no país que mais percebe de política de saúde, mas quero dizer algo em abono da verdade: nos últimos anos tivemos da parte dos nossos fornecedores uma posição louvável a todos os níveis, assumiram-se como parceiros, não cortaram, não retaliaram.  Conseguimos manter a atividade sem falhas. Foram um parceiro e não um fornecedor. Quantos aos preços, também gosto de me colocar no lado contrário. Tenho 500, 600 dias de prazo médio de pagamento, dívidas de milhões. Isto de alguma forma tem de ser recuperado pelas empresas.

Mas é um mau negócio para o Estado.

Não tenho dúvidas de que, se tivéssemos prazos médios de pagamento normais e dívidas sustentáveis, seria possível negociar e ter reações da parte da indústria diferentes. Mas mesmo assim estou surpreendido que nestes anos todos de crise, quer no período de emergência quer neste “phasing out”, a indústria deu sinais de uma enorme resiliência e sentido de missão pública. Não falo apenas da indústria de medicamentos mas também dos dispositivos médicos.

Santa Maria está entre os hospitais que tiveram um reforço de capital em janeiro para pagar dívidas mas não podem usar o dinheiro enquanto as Finanças não disserem por que ordem pagar as faturas. Esta centralização não passa, de certa forma, um atestado de incompetência aos gestores?

Sobre isso tenho uma opinião muito clara. Há um conjunto de palavras que devem ser colocadas em prática e não ser usadas apenas em momentos de circunstância. Uma delas é autonomia. Temos diariamente 5 mil a 7 mil doentes à nossa responsabilidade, temos à nossa responsabilidade estudantes da Faculdade de Medicina e de outras escolas, temos 700 internos em formação. Não é admissível que um conselho de administração de uma das 50 maiores empresas deste país tenha de pedir autorização para uma despesa de 35 350 euros…

O que é que seria admissível?

O que seria correto, havendo como há  uma contratualização entre o governo e a instituição através dos contratos-programas – que definem uma série de indicadores de desempenho assistencial e económico-financeiro – era sermos avaliados no primeiro trimestre de cada ano e uma administração que não cumprisse seria automaticamente exonerada.  

Mas sente a atual situação como um atestado de incompetência?

Não me sinto confortável e acho que pode ser uma forma de desresponsabilização. Se temos objetivos mas todas as decisões major em termos de contratação de recursos humanos, obras e equipamentos não são decisões finais nossas, isso pode levar a uma desresponsabilização. No limite posso sempre dizer que não atingi determinado resultado porque não me autorizaram em tempo útil… Nunca fui nem irei por aí, mas isto é o contrário do que é suposto ser autonomia e responsabilidade de gestão. Obviamente que as instituições são diferentes e não deve haver problema em assumir que há cinco instituições neste país que têm uma responsabilidade maior no SNS, como não deve haver problema em assumir que a área oncológica é uma área crítica pelo crescimento da doença e dos custos. Missões como as do IPO são incomparáveis. Até há pouco tempo vivíamos de costas voltadas mas hoje nós e o IPO de Lisboa temos uma parceria estratégica.

Chegam também casos de pessoas que os privados não continuam a tratar por acabarem os plafonds dos seguros, como sinalizou o IPO de Lisboa?

Isso não acontece só na doença oncológica. 

Acompanha a ideia que se tem ouvido mais à esquerda de que o setor privado tem crescido à custa da deterioração do SNS, de haver maiores listas de espera, condições de hospitalidade inferiores?

Construímos ao longo do tempo um património inestimável e insubstituível que é o SNS mas não nos podemos esquecer que o SNS foi construído numa fase da nossa história e da nossa democracia em que o Estado era predominante em termos de resposta sanitária. O mundo entretanto mudou. Faço em maio 25 anos como gestor num serviço do SNS e acompanhei essa evolução. Ao longo do tempo cresceu o pilar público mas cresceu também o pilar privado, social e público-privado. Somos o único país da Europa que tem quatro pilares de saúde a coabitarem tranquilamente todos os dias. O setor privado só cresce aquilo que for fruto da sua capacidade de atração, da sua notoriedade e da sua credibilidade.

O SNS não tem contribuído para uma maior atractibilidade?

Naturalmente contribui: o privado ocupa o espaço que o público lhe concede ou ao qual não consegue dar resposta, tal como o setor social. Mas isso na minha visão é bom e defendo-o desde que começaram a aparecer as primeiras respostas consistentes. Há um conjunto de disponibilidades, ofertas que foram surgindo que no meu ponto de vista nada têm de errado. E o setor público fica como meio de resposta complementar? Com certeza que não, tem de lutar para ter o seu espaço. Em termos de regulação deste sistema que tem crescido naturalmente, parece-me é que há uma série de decisões que têm de ser tomadas, em matéria de recursos humanos, de responsabilidades na formação, de obrigatoriedade de resposta.

Como assim?

A primeira pergunta que uma unidade do SNS faz não é seguramente “como é que vai pagar”. É quem é a pessoa, o que tem. De seguida modula-se o pagamento em função das circunstâncias. Diria que o que está construído deve ser melhorado e pode ser afinado, mas o SNS também se terá de ajustar a esta dinâmica. 

Qual é a questão prioritária?

São muitas, mas sou apologista de que deve haver menos mas melhores hospitais. Há excesso de oferta pública em algumas cidades, como a nossa.

Com o futuro hospital de Lisboa Oriental fecharão, teoricamente, algumas unidades no centro da cidade.

Diz bem, teoricamente. Há uma infra-estrutura que é desejada há décadas e sempre ficou claro que seria uma infra-estrutura de substituição.

Ultimamente surgiu a ideia de que afinal S. José ou Estefânia poderão dar lugar a outros polos de saúde.

Confio que quem está na av. João Crisóstomo e quem está a liderar este projeto tenha a visão larga de pensar numa infraestrutura de substituição que, arrancando em 2023, pelo menos até 2030 deverá dar resposta em termos de agudos sem grandes necessidades de ajustamento em termos hospitalares. Acho que podem ser encontradas soluções como encontrámos para o Pulido, manter algumas coisas de perímetro hospitalar mas abrir o restante espaço à fruição em saúde sem ser forçoso que sejam cuidados hospitalares de agudos.

Tem receio da concorrência que vos vai fazer esse novo hospital público? 

Não. A nossa preocupação é conjugar o nosso crescimento com o que vai ser a estratégia dessa unidade. Que capacidade vão ter na área do tórax? Temos o maior departamento, mas não fará sentido fracionar a resposta? Na psiquiatria, vamos continuar a crescer para ter quase um hospital psiquiátrico em Santa Maria ou repartir responsabilidades?

Acredita no rumo seguido pelo governo? Há quem conteste que não está a haver reformas de fundo.

Respondo da seguinte forma: quando não acreditar na minha tutela, terei saído no dia anterior. 

Nunca sentiu o aproximar desse dia?

Não. Poderei estar desconfortável, em determinados dias menos satisfeito, mais ansioso, mas não. Tenho isto para mim de forma claríssima desde 21 de fevereiro de 2013: estou cá ao dia, nunca tive a perspetiva de ficar três anos, seis anos ou nove anos. Sei que pode haver situações que me obriguem até a sair um dia por entender que não tenho condições para continuar ou que do ponto de vista ético não posso continuar. 

Gostava de fazer um terceiro mandato?

É uma questão que tem de ser decidida em dezembro e não é uma resposta só minha, depende das partes, da avaliação dos acionistas e de uma avaliação que eu faça. Não serão estados de espírito.

Podia estar farto e querer regressar a uma vida santa na Florida da Europa.

A minha casa profissional é a Universidade do Algarve desde 1985, é lá que estão as minhas raízes, mas acho que ainda sou demasiado novo para pensar em retirar-me para situações mais tranquilas. Mais próximo dos 70 anos…

Em 2015 saiu um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos que dizia que o Santa Maria era dominado por interesses da maçonaria, Opus Dei e PS. Na altura disse-me que não sentia pressões. Continua a ser assim ou já teve momentos de maior fricção?

Continua a ser exatamente igual. Na altura, com esse estudo e independentemente de já terem passado anos sobre os relatos, criou-se um estigma em torno da associação.

Não existem esses grupos?

Respondo como respondi então e como responderei daqui a dois anos se cá tornar a ficar: esta instituição é o espelho da sociedade. Temos católicos, protestantes, judeus, muçulmanos, ateus. Temos as opções religiosas e outras tal como existem na sociedade.

Nunca apanhou uma reunião de maçons numa sala abandonada? 

(Risos) Não. Esta instituição tem figuras de referência que ao longo do tempo pertenceram uns à maçonaria, outros ao Opus Dei, outros ao PS, ao PC, ao Bloco de Esquerda. Uns são do Benfica, outros do Sporting, outros do Porto. 

Há muitas quintas, muitas guerrinhas?

Não. Em momentos do passado houve conflitos latentes entre o diretor do hospital e o diretor da faculdade, diz-se que as paredes eram vedadas, nunca vi nada disso e de qualquer forma é passado. São situações que aconteceram aqui e em todas as instituições. Nunca senti pressões nem para nomear, nem para exonerar, nunca apanhei uma reunião atípica. Já participei em reuniões que poderão dizer-se atípicas, com os líderes das comunidades religiosas sentados todos à mesma mesa para pensarmos se a assistência espiritual e religiosa no hospital estava a ser bem feita e concluiu-se que se calhar precisávamos de um local de culto mais transversal às religiões.

E vão ter?

Temos um projeto para executar.

Uma mesquita ou um espaço mais ecuménico?

Sim, a ideia será um espaço mais semelhante ao que foi construído para a Expo 98. Mas respondendo, é conhecida a minha forma de estar desde que cheguei: falar e receber toda a gente por igual, do assistente operacional ao diretor do serviço. Lá fora, tomo café, almoço, janto como quem me apetecer.

Na altura perguntei-lhe se pertencia à maçonaria mas não me respondeu.

Digo o que disse na altura. Há questões públicas da minha vida como ser do Benfica ou do Portimonense já agora mas sobre outras mantenho reserva.

É militante. Esteve no congresso do PSD?

Sim. Não apoiei neste disputa o dr. Rui Rio, apoiei o dr. Santana Lopes com a nota de que dr. Rui Rui tem excelentes capacidades pessoais e políticas. Tive oportunidade de o conhecer como presidente da câmara quando era secretário de Estado e tivemos sempre uma boa relação institucional e pessoal, mas enfim a vida é feita de opções. Agora no dia da eleição o presidente do partido passa a ser um, ponto final parágrafo.

Gostava de regressar à política ativa?

Foi um ciclo da minha vida muito gratificante. Quando saí em 2005 disse que nunca ouviriam da minha boca duas coisas: uma era que estava arrependido e a outra era que nunca mais. Repare, eu aos 25 anos fui diretor regional [Instituto da Juventude] e devo-o ao facto de ter uma vida política. Chego à saúde por isso, pelas minhas intervenções sobre saúde que me levam para a comissão instaladora da região da saúde do Algarve. Se vou voltar um dia, não sei.

Gostava de ser ministro de saúde?

Não sei, vou ser muito prático. Há quem diga que ser presidente de Santa Maria, ou do Centro Hospitalar Lisboa Norte, é a antecâmara para chegar a ministro. Acho que não é. A antecâmara para chegar a qualquer lugar é aquilo que fazemos ao longo da nossa vida. Tudo o que tenho feito tem sido por mérito. Sou filho de uma família humilde, agricultores e pequenos comerciantes, mas tudo o que sou devo-o a eles e a mim e não é por outras razões que não o trabalho.

Mas, se surgisse o convite, aceitava?

Teria de analisar. Faria o que fiz em janeiro de 2013: ver se tenho capacidade pessoal e apoio político para exercer essas funções. Mas não é para mim um objetivo nem serei ministro a qualquer custo. Se um dia for será por convicção de que tenho condições.

Seria ministro com a atual ascendência das Finanças?

Como disse, se esse momento se proporcionasse, terei de avaliar as minhas condições pessoais e as condições da conjuntura onde se inclui Finanças e primeiro-ministro.

Execício teórico: se acordasse ministro amanhã e pudesse assinar um despacho, o que é que determinava?

Não vou responder, mesmo sendo teórico, por respeito ao atual ministro mas também porque isso, a acontecer, será daqui a dois anos – o que hoje podia ser uma prioridade daqui a dois ou seis anos pode não ser e eu gosto de ser confrontado ao longo do tempo com o que digo. 

A exclusividade, por exemplo, que é algo que defende e não tem avançado, seria uma medida a equacionar?

Penso que tem de haver um dia em que se comece a dar a opção aos jovens especialistas de fazerem horário integral no público ou então irem para o privado e será um processo que vai demorar uma década, o mesmo na carreira de enfermagem, com uma contrapartida salarial. Depois até pode haver adesões havendo disponibilidade financeira e sustentação para isso, um retorno de atividade. Acho que não poderá nunca ser algo “agora vamos separar público e privado”, não seria sensato nem é mais possível fazer isso pela dimensão que tem hoje o setor privado e social. 

Não separando abruptamente as águas, devia começar-se já pelo menos a propor-se a exclusividade?

Acho que devia ter sido ontem. São questões incontornáveis. Os recursos não são infinitos e o SNS não tem muito mais capacidade para determinadas dualidades funcionais, duplicações de despesa. Isto tem de ser feito com uma ampla convergência no campo político porque pode atravessar diferentes governos, tem de haver um compromisso entre os partidos do arco da governação e tem de haver um diálogo e concertação com os sindicatos, ordens e os privados porque é uma solução que será boa para todos. O privado também contrata cada vez mais full-time porque também não lhes agrada ter profissionais só umas horas.

Em termos práticos, poderia fazer mais consultas, mais operações?

É completamente diferente fazer a gestão integral do horário de um profissional ou uma situação em que a partir de determinado momento já não há incentivo que se possa dar para que fiquem, porque as pessoas têm compromissos lá fora. Isto não é só uma questão de médicos e enfermeiros, há assistentes operacionais em acumulação de funções, é algo transversal às carreiras. Se conseguíssemos alguns projetos-piloto nesta área para se começar a separar a atividade pública e privada seria positivo. Quem ficar no setor público tem de ficar em full time e exclusividade, ponto. Quem já está, poderia ir migrando. Isto assim não é fácil, gerir recursos com horários diferentes, 30 horas, 35 horas, 20 horas, não é bom para ninguém.