A vida, instruções para o utilizador


Há quem procure nas estantes da secção de auto-ajuda uma solução de vida sem cuidar dos perigos ocultos na vida traduzida


Há quem procure nas estantes da secção de auto-ajuda uma solução de vida sem cuidar dos perigos ocultos na vida traduzida.

Sou um coleccionador de palavras, de frases arrumadas e a minha curiosidade não conhece limites. Mais do que os clássicos da literatura encontro consolo nas palavras ditas úteis, nas instruções para utilização de bens e serviços. A globalização veio premiar esta devoção à palavra utilitária e estreitou a distância comunicacional entre o texto técnico, a comédia e a tragédia.

Quando a República Popular da China se tornou a fábrica do mundo não se deteve na cópia “fotográfica” de bens e equipamentos, avançou afoita para as respectivas instruções. Qualquer compra numa loja chinesa é premiada com um “fortune cookie” que se desembrulha com esperança no perceber do procedimento adequado a fazer funcionar o gadget recém-adquirido. Erro. As instruções vertidas para a língua de Camões não são destinadas a informar antes se querem divertidas. Sob o signo da pilha recolhi estas, a propósito do que a factura diligentemente emitida assegura ser uma “chive da fenda gorda”: “1 – Um adulto tem sempre que tomar ou tocar pilas.

2 – Desperdiça pilas correitamente – nunca jogar ao fogo ou prover de abrir a caixa das pilhas.

3 – Sempre guardar pilhas pequenas fora de alcance de crianças pequenos porque elas podêm apresentar um risco de sufocação. 4 – Pilas estão prejudiciais se elas estã tragadas. Tem que ir ao médico caso que criança traguei uma pilha pequena. 5 – Nunca dar um curto-circuito ás bornas de pilas. 6 – Nao recomenda ariancas menores de 3 ano porter pecas desmonta.” Penso que está encontrada a explicação (comunicacional) para os menos bons resultados obtidos na reciclagem de pilhas e baterias…

A tradução das instruções destes produtos terá sido feita com ajuda de uma qualquer versão manca do Google translate, sem revisão nem controlo “humano” e com uma passagem intermédia pelo castelhano. O resultado é uma novilíngua que alerta de forma pouco menos do que incompreensível para os perigos inerentes à utilização incorrecta de certos equipamentos. Em Portugal e por via destas traduções conseguimos livrar-nos dos milhões de páginas de regulamentação técnica da União Europeia que sufocam os britânicos e que terão justificado o Brexit.

Não se julgue que as autoridades não velam pelos desmandos do tradutore, traditore. Já em 1992, o doutíssimo Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República lavrou não menos sapiente Parecer onde se determina que “1 – Os consumidores em geral têm direito à informação completa sobre as características essenciais dos bens e serviços, por forma a poderem fazer uma escolha consciente e racional entre eles, e a utilizá-los em segurança e de modo satisfatório; 2 – As informações afixadas em rótulos, embalagens ou similares devem ser precisas e esclarecidas, além do mais, quanto à natureza, composição e demais características relevantes dos bens e serviços a que se reportem; 3 – As informações sobre a natureza, características e garantias dos bens ou serviços oferecidos ao público no mercado nacional constantes de rótulos, embalagens, prospectos, catálogos, livros de instruções para utilização ou outros meios informativos deverão ser prestadas em língua portuguesa.”

Do outro lado do mundo, em Macau, as regras de afixação em regime bilingue são cumpridas com zelo e propiciam a boa disposição. Gosto particularmente da placa que anuncia a “Associação de Ópera Chinesa dos Moradores Marítimos e Terrestres da Barra de Macau”.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990