O que há de comum entre o Brexit, o “referendo” catalão, os resultados das eleições holandesas, francesas, polacas, austríacas, checas, e os fogos florestais em Portugal? Parafraseando Gil Vicente, nada e tudo.
As eleições, referendos, manifestações e comoções sociais mostram as vísceras da vontade popular e justificam as tentativas de nelas ler o futuro. Procurar compreender o mundo, interpretá-lo, dar-lhe um sentido racional a partir das percepções é prática comum da espécie e conduz a decisões prenhes de consequências, como a que os nossos avós tomaram ao descer das árvores.
A necessidade de explicar o mundo é tanto mais premente quanto a velocidade das transformações não pára de aumentar, sendo superada apenas pelo aumento da velocidade a que captamos tais mudanças. A hiperconectividade dos humanos em redes de informação não basta para sossegar os membros da espécie. Mesmo o efeito de bolha que inconscientemente todos procuramos ao frequentar na sociedade em rede os que julgamos pensar e opinar como nós serve apenas para agudizar o efeito da solidão face ao espelho. Na bolha das redes sociais confrontamo-nos com cópias de pensamentos únicos que nos podem sossegar durante algum tempo, mas que não afastam o medo profundo de estar a falhar a compreensão das mutações em curso.
Não faltam intérpretes e menos ainda interpretações. Há quem se entretenha a contar espingardas políticas pela Europa, alinhando governos de esquerda e de direita como se estivéssemos em 1789. Há quem queira encontrar um padrão de conduta para o Leste e outro para o Oeste, como se a xenofobia só existisse a leste, onde, por sinal, não há imigrantes e há cada vez mais emigrantes, com perdas de população que chegam aos 25% desde a queda do Muro de Berlim (os nacionalismos populistas a leste capturaram as camadas mais envelhecidas da população, os jovens emigraram). Também há os que celebram a libertação do jugo da União Europeia, com o Brexit, tendencialmente mais à direita (esquecendo o muito que a direita liberal fez pelo pilar económico da UE), e os que celebram a libertação da opressão dos Estados, com os independentistas catalães, tendencialmente mais à esquerda (sem questionar os perigos dos independentismos, nacionalismos, soberanismos e populismos).
A fé cega numa interpretação “conveniente” resulta do medo, do medo de não compreender, do perigo pressentido na mudança. E o medo tem boa boca. Alimenta-se da xenofobia, do populismo, da precariedade laboral, do empobrecimento das classes médias, da insustentabilidade da segurança social já no médio prazo, da certeza de que os filhos viverão pior do que os pais, da permanência dos filhos debaixo do tecto físico ou financeiro dos pais aos 30 e 40 anos, num renovado adiar da chegada à idade adulta plena, pelo menos na sua componente de autodeterminação económica.
E há também o medo de vir a ter medo, de ver ruir os elementos básicos do contrato social: protecção da vida, da integridade física, dos bens materiais, dos modos de vida. Foi o que aconteceu numa parte significativa do território português nestes últimos meses. Ao espanto sucedeu o medo. A multiplicação de explicações, a complexidade das mesmas, o passar de culpas, a ausência de mecanismos de responsabilização são um terreno muito fértil para a propagação dos medos. A tentativa recente de considerar que o combate aos incêndios florestais em Portugal é uma responsabilidade da UE, feita com alacridade por todos os partidos portugueses com representação no Parlamento Europeu, mostra que não perceberam o que aconteceu.
Não faltará muito para que surjam tentativas de cavalgar o medo.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990