Critiquei diversas vezes a atuação de Marcelo Rebelo de Sousa enquanto Presidente da República. E fi-lo quando não apreciei o seu método, menos ainda a sua estratégia de afirmação pessoal. No entanto, da mesma forma que se critica quando se discorda, louva-se quando se concorda. E a atuação de Marcelo depois dos incêndios de 15 de outubro foi exemplar. Foi muito diferente da seguida pelo próprio em Pedrógão Grande, onde o seu “fez–se o máximo que podia ser feito” se tratou de uma omissão terrível. Há quem veja hipocrisia na sua atuação porque a bondade não se publicita. Sucede que Marcelo é o Presidente da República e, depois da insensibilidade do governo, foi importante que o chefe do Estado agisse como agiu.
Agora que Passos Coelho está de saída da liderança do PSD, Marcelo decidiu ser o Presidente de todos os portugueses, como Soares chegou a ser, mas com a diferença que, hoje, o parlamento não é dominado por um só partido. Façamos só um ponto da situação muito rápido de forma a que se perceba o que vem a seguir: no nosso sistema semipresidencial, até agora de pendor parlamentar, o primeiro-ministro de um partido com maioria absoluta é dono e senhor da governação porque domina o parlamento e cala o Presidente. Reunidas estas condições, não há chefe político com mais poder num Estado democrático. Nem o primeiro-ministro britânico, porque, nesse caso, os deputados que o sustentam são eleitos por círculos uninominais e não em listas fechadas pelos líderes dos partidos. No entanto, caso essa maioria monopartidária não exista e caso o primeiro-ministro esteja debilitado, como está Costa, e o Presidente seja interventivo e popular, como é Marcelo, o pendor parlamentar do sistema, pelo qual Sá Carneiro lutou contra Eanes, pode estar em risco.
É verdade que depois da revisão constitucional de 1982, o Presidente perdeu poderes constitucionais. Essa foi, aliás, a vitória póstuma de Sá Carneiro. Mas não deixa de ser verdadeiro que o Presidente pode, caso tenha preponderância sobre o governo, como parece ser o caso atual, influenciar esse mesmo governo. Marcelo pode bem vir a ser o primeiro Presidente chefe de governo do regime, modificando o sistema político dentro dos limites permitidos pelas regras constitucionais. Assim, é importante que elogiemos a atuação de Marcelo em outubro, mas que não o endeusemos. Como o próprio lembrou, ele é pessoa; uma pessoa que é um político que tem uma ambição e que pode virar o sistema do avesso.
Advogado, Escreve à quinta-feira