Mostar.  A cidade  que renasceu das cinzas

Mostar. A cidade que renasceu das cinzas


A memória dos habitantes de Mostar não deixa que se apaguem as marcas de uma cidade fustigada pela guerra. As fachadas dos prédios ainda mostram as cicatrizes de quem testemunhou o pior lado da humanidade


Chegar à Bósnia e Herzegovina é perceber que não percebemos nada. Sabíamos que íamos sair do conforto da União Europeia, em que não há nada com que tenhamos de nos preocupar, está tudo assegurado pela universalidade das regras e das normativas de um mercado único que uniformiza muito do nosso dia-a-dia sem que nos apercebamos.

Passamos a fronteira e estamos no desconhecido. Sobre o país, sabemos o que os media, os professores e os livros que lemos nos ensinaram. Nada se assemelhará aos testemunhos vivos que encontraremos nas ruas daquele que é o país que até hoje mais me pesou. A guerra foi-nos sempre um conceito distante. O sítio onde nascemos foi-nos dado por um fortuito acaso, mas nem todos tiveram a mesma sorte dos que nasceram na bela costa ocidental europeia.

Tudo o que virá a partir desta fronteira será de aprendizagem permanente, choque cultural, avalanche de informação e overdose de emoções. Os novos eram demasiado novos quando a guerra lhes chegou, mas a memória demasiado forte para que se esqueçam, os velhos eram demasiado velhos para que não se esqueçam. Estão abertas as cicatrizes dos tiros, das bombas, os edifícios ainda têm marcas de horror e pobreza. Tudo o que vemos e visitamos brotou da resiliência e da luz de um povo que é demasiado bom a receber estranhos.

Ainda no autocarro de Dubrovnik até Mostar, que nos custou 101 kunas croatas – aproximadamente 13 euros –, senta-se ao meu lado Øystein Nybø. De grande porte, olhos azuis e uma careca a descascar graças ao sol que apanhou no sul da Croácia, o norueguês de 55 anos sorri enquanto distribuem os passaportes, depois de passarmos a fronteira para a Bósnia e Herzegovina. “Aposto que nem vai tentar ler o meu nome”, diz-me a rir–se. Estava certo. Depois de pronunciar tudo que era nome de gente naquele autocarro, a senhora que distribuía os documentos de identificação bem tentou, mas acabou por desistir e guiar-se apenas pela fotografia. Øystein deu uma gargalhada: “É sempre assim.”

Daí surgiu a conversa que só terminou quando saímos, em Mostar. Øystein continuaria até Sarajevo e daí voltaria à Noruega. Nunca foi a Portugal, mas conta-nos que um amigo encontrou o seu grande amor em Lisboa, enquanto passava férias e trazia uma t-shirt com a inscrição “I love Sydney” vestida. “Ele vivia em Sidney e não se tinha apaixonado, é preciso ir a Lisboa com uma t-shirt daquelas para uma australiana ir ter com ele, a perguntar se conhecia a cidade, para até hoje ainda estarem casados”, conta, entusiasmado. Já ouviu falar muito bem da comida e da história portuguesa. Mas é um apaixonado pela Bósnia e Herzegovina e esta é já a quarta vez que vai a Sarajevo. Trabalhou para a NATO numa missão de paz no norte da Croácia na altura do pós-guerra, já depois de 93. Escreve artigos para revistas militares e garante que este país que estou prestes a conhecer “é a verdadeira pérola da Europa, sem que nada se assemelhe a ele”. Mais tarde vou perceber porquê mas, por enquanto, apenas me aguça a curiosidade.

Despedimo-nos e trocámos contactos. O autocarro chega finalmente a Mostar.

Chegámos à estação de autocarros da cidade, levantámos dinheiro e levámos logo com uma taxa de seis euros por estarmos fora da rota da UE. Recebemos a mensagem do roaming, um megabyte de internet equivale a seis euros, acabaram-se os dados móveis e tudo será feito offline. Um marco conversível bósnio (KM) equivale a 50 cêntimos. Com a ajuda da tecnologia, mais uma vez, com o mapa offline descarregado do Google Trips, seguimos até ao Hostel Lovely Home. Poupam-se uns quantos trocos em usar mapas digitais; caso contrário, teríamos colecionado mapas a viagem toda.

Mostar é verde e, embora cidade, parece uma aldeia grande, onde as ruas são cobertas por uma calçada irregular, de pedras gordas, redondas.

Depois de andarmos 600 metros virámos por uma rua que nos levou a uma viela apertada, com quintais e portões grandes, até que uma criança de cinco anos, com óculos redondos, numa bicicleta já sem rodinhas, nos pergunta com um enorme sorriso “Hostel Lovely Home?”, enquanto com o braço nos faz sinal para a seguirmos.

Já à porta aparece o pai do miúdo, nosso anfitrião. Armar tem 39 anos, mas a idade pesa-lhe no rosto. “As primeiras bombas caíram tinha eu 13 anos, quem cresce na guerra nunca mais esquece, compreendes? Oh, claro que não compreendes. Fico feliz que não compreendam”, diz-nos enquanto nos serve café feito por ele, à moda do seu país, com uma valente borra no fundo. Enquanto nos recebe desenha-nos no mapa tudo o que precisamos saber sobre Mostar.

“Esta cidade era linda, era a capital da Herzegovina. No tempo da Jugoslávia éramos tão, tão felizes. Destruiu-se tudo, hoje somos assim, pobres, não temos nada”, lamenta, enquanto mostra vídeos do bombardeamento da imagem de marca da cidade: a famosa Ponte Velha, construída no tempo do Império Otomano e que se erguia no rio Neretva há 427 anos até que foi completamente destruída pela Guerra da Bósnia em 1993.

Armar fala-nos da situação política do país, que foi mais tarde confirmada por todos os habitantes da Bósnia e Herzegovina que viríamos a conhecer: “É caótica, tudo funciona muito mal. Vejam que Mostar não tem eleições desde 2008!”, descreve com indignação.

O transparente rio Neretva é a fronteira natural que divide os bósnios muçulmanos e os sérvios dos croatas. Depois do conflito a maioria dos sérvios deixou a cidade, mantendo-se apenas uma pequena porção desta comunidade étnica. Hoje, apesar de separadas pelo rio, as três etnias vivem em paz, sendo a maior porção da população croata.

Ainda ao pequeno-almoço, Armar diz que as estatísticas são feitas só para o poder e os jornalistas: “Nós nunca quisemos saber da etnia de ninguém, vivíamos todos felizes e misturados. Sabemos respeitar o conceito de multiculturalismo. Até que quiseram separar-nos a todos. E conseguiram. A guerra levou- -nos tudo.”

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