“Rocket Man!”, diz o roto à ONU


Na senda da simplificação do discurso político, Trump chegou na terça-feira à assembleia-geral das nações mais ou menos civilizadas disfarçado de Capitão América


Na senda da simplificação do discurso político, Trump chegou na terça-feira à assembleia-geral das nações mais ou menos civilizadas disfarçado de Capitão América.

Quando todos esperavam ouvir uma síntese do programa de política externa dos EUA, o discurso do ainda POTUS arrancou com uma longa arenga em torno dos sucessos dos EUA sob a sua administração, velha de oito meses, e absolutamente deslocada na ONU. Feito o discurso para o eleitorado americano, Trump apresentou a sua visão da sociedade internacional. Agarrou a palavra soberania e, não sabendo que a Carta da ONU refere de forma matizada o “princípio da igualdade soberana de todos os seus membros”, repetiu-a à saciedade, concluindo que a sociedade internacional resulta do livre confronto das soberanias nacionais. De caminho caracterizou a soberania como elemento absoluto, caracterização que implica a impossibilidade de uma sociedade internacional, em particular uma que siga o modelo da ONU. Com a ajuda de Trump, os EUA regrediram para o período pré-kantiano de configuração da sociedade internacional e passaram de cosmopolitas a paroquianos. Algumas das consequências são particularmente perigosas. Trump não se considera vinculado por nenhum acordo internacional (e não vamos referir princípios ou valores para não levarmos a discussão para um nível demasiado elevado), não acredita no contratualismo internacional e na estabilidade dos acordos, prefere uma lógica de negociação permanente em busca de um better deal. Já tínhamos ouvido, durante a campanha eleitoral nos EUA, esta abordagem de agente imobiliário a propósito do NAFTA, da NATO e do Acordo de Paris. O primeiro está em negociação de revisão suave, para salvar as aparências. A NATO recuperou o seu lugar tradicional no discurso dos presidente dos EUA. Já as partes no Acordo de Paris têm ignorado olimpicamente os desejos americanos de uma renegociação.

O discurso de Trump trouxe o anúncio, por via do retomar das sanções contra o Irão, da denúncia do acordo nuclear. E, neste particular, Trump encontrou–se, mais uma vez, sozinho contra o mundo. O fim do acordo implica o retomar da proliferação nuclear no Médio Oriente, com o perigo de o Paquistão (uma recente descoberta de Trump) se tornar o supermercado nuclear dos radicais islâmicos, correndo-se o risco de o terrorismo passar ao nível atómico ou, pelo menos, àquilo que seria uma dirty bomb, que mesmo sem promover uma explosão nuclear espalharia radioactividade numa qualquer cidade ocidental.

Trump regressou aos piores momentos de Bush júnior, com a proclamação de um eixo do mal que inclui, por ordem decrescente, Coreia do Norte, Irão, Síria, Venezuela e Cuba. Mais uma vez se constata que a administração Bush tinha elementos mais letrados, não tendo incluído na lista dos grandes malévolos dois Estados economicamente falhados e que podem servir de propaganda às virtudes do capitalismo americano.

Não se julgue que Bush foi o primeiro (ou será o último) a usar o púlpito da AG da ONU para vocalizos políticos. Kadhafi arengou enquanto rasgava páginas da Carta da ONU. Hugo Chávez, que discursou uma vez a seguir a Bush júnior, informou a plateia de que “ainda sentia o cheiro a enxofre” deixado pelo orador precedente. No entanto, nunca nenhum chefe de Estado ameaçou, a partir da AG, com a destruição total de um outro Estado sem se dar ao trabalho de enunciar a lógica onusiana: proibição do uso da força, com excepção da legítima defesa, incluindo a colectiva, contra uma agressão em curso ou, no limite, iminente.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990