As expetativas é que são o diabo


Não se compreende por isso que, com uma base de 150 municípios liderados pelo PS e com um ambiente de confiança e de euforia em relação à governação, no essencial, a expetativa da direção do PS seja “apenas” a de manter a liderança da Associação Nacional de Municípios Portugueses e da Associação Nacional de Freguesias


Portugal é um território onde a euforia e a depressão têm vasos comunicantes, configurando o ânimo popular em oscilações, por vezes, pouco inteligíveis. Umas e outras nem sempre emanam da realidade, mas de narrativas construídas em cima de mentiras, de meias-verdades e de outros exercícios políticos de retórica.

Neste contexto, a indução gerada depois da governação PSD/CDS apresenta sinais positivos na gestão das circunstâncias, ainda que pouco sólidos, mas preocupantes em termos das expetativas. Não deixa de ser estranho que quem apresenta resultados na gestão das circunstâncias se apresente um desastre na modulação das expetativas. Em 2015, a expetativa era que o PS ganhasse as eleições legislativas, mas foi o PSD que obteve mais votos, embora com insuficientes mandatos parlamentares. Em 2015, após a derrota, a expetativa era de que uma solução governativa sem cimento nas questões da construção europeia e nas questões estruturais da nação não tivesse grande futuro. Já em 2013 e 2014, a expetativa tinha sido que o PS ganhasse as eleições autárquicas e as europeias, tendo-se confirmado as ânsias.

Num país entre euforias e depressões, as expetativas são relevantes para os estados de alma, para a confiança e para os comportamentos políticos. Respirar-se melhor não significa que tenhamos conquistado o direito ao ar puro para a vida. Há sempre riscos que se colocam às soluções e às opções políticas que, cuidando pouco da sustentabilidade, são focadas nas respostas imediatas, de circunstância.

É positivo que a agência de rating Standard & Poor’s tenha subido o rating da dívida portuguesa de “lixo” para um nível de investimento, superando a realidade imposta a 13 de janeiro de 2012. Pela disputa em torno da mudança de rating ficou até claro que, para o primeiro-ministro, as agências de ratings já não são “lixo”. Ao fim de mais de cinco anos e meio, foi uma boa notícia para Portugal, fundada na constatação do crescimento económico, da consolidação orçamental e de uma banca mais sustentável – três critérios em que PCP e Bloco de Esquerda divergiram com o PS em vários momentos, o que não impediu a pronta corrida destes à primeira linha da partida para reivindicar mais desagravamentos e mais despesa, tudo numa espiral de ampliação das expetativas dos cidadãos catalisada pela negociação do Orçamento do Estado para 2018 e das narrativas eleitorais autárquicas.

Ao contrário do que afirma a coordenadora do Bloco de Esquerda, o rating não subiu porque se acabou “com os cortes nos salários e nas pensões”, “aumentou o salário mínimo nacional”, erradicou “as privatizações” ou protegeu os serviços públicos.

Em pleno século xxi, é inacreditável que alguém construa narrativas alheadas da realidade e que o faça com teatral convicção, como se acreditasse no que está a afirmar. O crescimento económico que se regista deve-se sobretudo às exportações e ao turismo, não ao consumo gerado por reversões. Estas são positivas para a vida das pessoas e para o ânimo, mas insuficientes para induzir o crescimento de que o país precisa.

É neste quadro de confiança e de expetativas altas que, a 1 de outubro, vão realizar-se as eleições autárquicas. Estas narrativas falsas, as tentativas para denegrir o poder local e para gerar casos que não existiriam noutros tempos contribuem pouco para o combate à abstenção. Aliás, não há maior contradição do que os níveis de abstenção numas eleições em que são escolhidos os políticos que estão mais próximos das pessoas e dos territórios. Com frequência, quem não participa é o primeiro a criticar as opções tomadas durante o mandato dos eleitos locais.

É por este quadro geral positivo, em que até do “lixo” saímos, que é expetável que, nas eleições autárquicas de 1 de outubro, o PS possa ampliar a maioria de 150 municípios que lidera desde 2013. Não se compreende por isso que, com uma base de 150 municípios liderados pelo PS e com um ambiente de confiança e de euforia em relação à governação, no essencial, a expetativa da direção do PS seja “apenas” a de manter a liderança da Associação Nacional de Municípios Portugueses e da Associação Nacional de Freguesias.

Não será “poucochinho”, sobretudo quando o poder local está em vésperas de poder receber novas competências e meios do poder central, no quadro do processo de descentralização? Como será possível poder considerar “uma grande vitória” resultados inferiores aos de 2013, com menos freguesias, câmaras, votos ou mandatos?

Não será politicamente insustentável este nível de ambição quando a oposição ao governo, a da direita, se apresenta sem fulgor e sem sentido político, enquanto PCP e BE se comportam como se não tivessem nada a ver com a governação?

É que, mesmo que não se queira, existirão leituras políticas incontornáveis. É uma evidência que, em alguns pontos do território nacional, o PS não afirmou vontade política para se apresentar a votos ou para apresentar projetos mais ambiciosos. É uma evidência que a regra da recandidatura dos atuais presidentes não foi aplicada por igual. É uma evidência que houve vários constrangimentos processuais e financeiros que condicionam o trabalho democrático das candidaturas em defesa dos projetos para as suas terras, abrindo a porta a desesperos e aventuras.

É que, mesmo que não se queira, existirão sempre leituras e consequências políticas nacionais.

Quando se está no governo, pode haver sempre a tentação de olhar com distanciamento para as eleições autárquicas – uma tentação que deveria ter sido contrariada quando um dos apoiantes da solução governativa, o PCP, tem na implantação autárquica uma base fundamental da sua resistência política ao passar dos tempos. O problema é que, sendo tudo efémero em democracia, a base do poder político do PS foi quase sempre a sua forte implantação local. Já tem 150 municípios, na atual conjuntura, é só somar mais alguns.

 

Militante do Partido Socialista, Escreve à quinta-feira