Igualdade de género. Viagem ao mundo dos livros para meninos e meninas

Igualdade de género. Viagem ao mundo dos livros para meninos e meninas


Depois do caso dos “polémicos blocos de atividades”, como ironizou Ricardo Araújo Pereira, o i encontrou mais dezenas de títulos diferenciados para rapazes e raparigas. Repetem-se os estereótipos, mas as Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género diz que a questão já está ultrapassada


Há duas semanas, dois blocos de atividades para rapazes e raparigas da Porto Editora foram acusados de terem caráter sexista e discriminatório. Na sequência da polémica que se gerou nas redes sociais, a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) recomendou a suspensão da venda dos livros, o que acabou por acontecer. No parecer emitido pode ler-se que “esta segregação contraria o princípio de igualdade de oportunidades” e que as atividades deveriam estar num único livro destinado a ambos os sexos. O assunto parece ter esmorecido, mas uma pesquisa do i revelou que há mais livros do mesmo teor à venda no país.

São vários os exemplos obras diferenciadas para rapazes e raparigas, com pelo menos três dezenas de títulos orientados em função do género – alguns isolados e outros com versão feminina e masculina, como era o caso dos livros da Porto Editora.

O i contactou a CIG no sentido de perceber se a comissão está a analisar casos semelhantes ao da Porto Editora, fornecendo mesmo a lista dos títulos identificados. Fonte oficial começou por admitir tratar-se de “uma questão já ultrapassada”. Posteriormente, já noutro e-mail, não houve resposta direta às perguntas colocadas pelo i, explicando apenas que a comissão “não tem funções inspetivas” e por isso, os conteúdos analisados por ela serão “todas as situações que forem objeto de queixa ou que cheguem ao seu conhecimento”. Ainda assim, sendo informada pelo i de outros livros semelhantes aos que foram objeto de um parecer, a comissão não referiu se iria ou não analisar os seus conteúdos.

A influência dos estereótipos

No debate das últimas semanas houve quem defendesse os livros e quem repudiasse a escolha editorial da Porto Editora, que recusou qualquer “discriminação”.

Fará sentido este segmento de mercado? Luís Gonçalves, psicólogo clínico na Psinove, tem dúvidas de que existam vantagens, mas a questão é mais complexa. “Desde muito cedo ‘aprendemos’ que os rapazes gostam de azul e as raparigas de cor-de-rosa. Mas muitos rapazes gostam de cor-de-rosa, muitas raparigas gostam de azul e isso poderá não encaixar nessas ‘ideias preformatadas’ que temos à nossa espera desde o momento em que somos concebidos”, explicou ao i. Assim, para o psicólogo, “o género é muito influenciado pelo ambiente que nos envolve”.

Na análise feita pelo i, foi possível identificar vários estereótipos. Os livros para raparigas são, na sua maioria, cor-de-rosa e os dos rapazes estão associados à cor azul. Os temas também insistem nos mesmos conceitos: as raparigas gostam de princesas, fadas, culinária e moda, enquanto os rapazes preferem carros, monstros, animais e piratas.

Gonçalves considera que os estereótipos servem maioritariamente para organizar e categorizar a sociedade e as pessoas, definindo-os como “uma imagem criada que se torna automática na nossa forma de vermos o mundo social e que irá, até, influenciar a forma como nos vemos a nós mesmos”. Para o psicólogo, acabam por ser uma forma de “preguiça mental”, que não nos permite ver as pessoas na “sua especificidade”.

Num dos exemplos encontrados pelo i nas livrarias, intitulado “Superlivro de autocolantes para piratas” e “Superlivro de autocolantes para princesas”, verifica-se que o título para rapazes tem mais atividades de raciocínio e lógica – oito no total – contra três no livro indicado para as raparigas, o que vai ao encontro de uma das críticas aos livros da Porto Editora. No parecer, a comissão considerou que “o facto de haver um maior número de atividades com maior grau de dificuldade no Bloco de Atividades para meninos poderá reforçar a ideia de que há desigualdade nas capacidades cognitivas de meninos e meninas”.

O papel da biologia

Que há diferenças entre os sexos, parece ser consensual. Já que haja diferentes capacidades levanta dúvidas. “Existem realmente diferenças físicas, biológicas e emocionais entre homens e mulheres”, afirma Teresa Andrade, psicóloga clínica e professora associada no Instituto Superior de Saúde Egas Moniz. O mesmo diz Luís Gonçalves. “A neurociência tem-nos revelado pequenas diferenças entre o cérebro masculino e feminino: por exemplo, os homens usarão mais o hemisfério esquerdo enquanto as mulheres usarão mais os dois em simultâneo”.

No entanto, estas diferenças não são de uma desvantagem. “Sabemos que o garante da vida é a pluralidade e a diferença”, sublinha Leandra Cordeiro, psicóloga e professora universitária. “A própria evolução está assegurada pela diversidade e não pela igualdade”.

Em suma, é natural existirem diferenças, pois são elas que formam a personalidade e o caráter de cada um de nós, o que está errado e se torna negativo é, na opinião de Teresa Andrade, “associar aos diferentes géneros menores capacidades ou impor restrições ao seu desenvolvimento pessoal e profissional apenas com base no seu género”.

“O papel de uma sociedade que se quer avançada é dar a todas as pessoas a capacidade para se autorealizarem e assim contribuírem para uma sociedade mais feliz e produtiva”, acrescenta a psicóloga.

Para Luís Gonçalves, mesmo que existam estes livros, o mais importante é também não ignorar as preferências de cada um e isso requer tempo, desde a infância. “Vemos as nossas crianças envolvidas em imensas tarefas diárias. Os pais desdobram-se nos vários papéis e têm muitas vezes pouca disponibilidade para estar com os filhos. Haver livros para rapazes e raparigas, haver livros que nos direcionam em relação a apenas uma categoria específica de comportamento, surge apenas como uma solução rápida.”

O psicólogo defende que é importante dar às crianças “espaço e tempo para ser e crescer” e deixá-las “explorar o mundo”, conhecerem-se, relacionarem-se com os outros e “aí veremos que as princesas podem, também, gostar de piratas!”. *Artigo editado por Marta F. Reis