Para que serve o Tratado proibindo as armas nucleares?


Usadas duas vezes, as armas nucleares garantiram, pelo efeito da disuassão, um longo período de ausência de conflitos armados generalizados. À escala planetária, é um período de paz


Numa época devotada ao imediatismo, à ordem do que é, que espaço sobra para o dever ser? Sociólogos e juristas estão separados por duas concepções antagónicas do mundo, difíceis de compatibilizar, mesmo para os cultores da sociologia do Direito. Se tal é evidente no plano interno, o confronto é ainda mais exacerbado no plano da ordem jurídica internacional.

Agora que a perspectiva de um conflito nuclear, ainda que limitado à escala regional, faz parte das notícias de abertura dos telejornais, muitos se esquecem das virtudes da arma nuclear no adiar da III guerra mundial. Usadas duas vezes, as armas nucleares garantiram, por via da dissuasão e desde 1945, um longo período de ausência de conflitos armados generalizados. Esta ausência é, vista à escala planetária, um período de paz.

A existência de armas nucleares, e logo a possibilidade do seu uso, voluntário ou acidental, não deixou de inquietar os jusinternacionalistas. A cause célèbre é um parecer do Tribunal Internacional de Justiça, proferido em 1996 a pedido da Assembleia Geral da ONU, depois de idêntica tentativa por parte da Organização Mundial de Saúde, em 1983, ter sido recusada pelo TIJ, invocando a ilegitimidade da OMS (a respectiva Carta não incluiria competências na matéria).

O parecer do TIJ sobre a legalidade do uso de armas nucleares balizou os limites da questão. A maioria (reduzida, é verdade) dos juízes não encontrou, “de acordo com o estado actual do Direito Internacional”, uma proibição expressa da posse ou do uso das armas nucleares, nem no direito convencional (não aceitando a equiparação às armas “venenosas”, químicas ou bacteriológicas) nem na matriz costumeira (considerando que as sucessivas resoluções da AG da ONU condenando a posse de armas nucleares não eram acompanhadas da opinio juris na medida em que os Estados possuidores de armas nucleares e os seus aliados votavam sistematicamente contra tais resoluções). A justificação do uso da arma nuclear foi reconduzida às condições estabelecidas pela Carta da ONU para o uso da força, ou seja a legítima defesa individual ou colectiva (incluindo as modalidades reguladas pelo Conselho de Segurança) matizadas pela necessidade (“o supremo interesse de um Estado” quando a sua existência pudesse ser posta em causa) e pela proporcionalidade.

Em Julho deste ano foi aprovado o texto do Tratado proibindo as armas nucleares, incluindo no âmbito da proibição o fabrico, teste, comércio, posse, uso ou ameaça de uso de armas nucleares. No final da conferência internacional que aprovou o texto do Tratado, 122 Estados votaram favoravelmente, a Holanda votou contra, Singapura absteve-se e a maioria da UE não votou. Et pour cause, os países possuidores de armas nucleares não participaram na negociação: EUA, Rússia, China, Reino Unido, França, Israel, Índia, Paquistão e Coreia do Norte.

O que mudará com a entrada em vigor do Tratado, para a qual bastam as vinculações de 50 Estados? Os mais optimistas acreditam na capacidade de contágio de outras experiências em que as convenções internacionais acabaram por criar uma convicção de obrigatoriedade mesmo para os Estados não partes (ou, mais realisticamente, criaram as condições de pressão por parte da sociedade internacional para fazer tais Estados modificar a sua conduta, mesmo sem se vincularem às novas convenções). Os casos de sucesso incluem as armas químicas, as minas antipessoal e as cluster munitions. E a entrada em vigor do Tratado obrigará o TIJ a re-examinar qual seja o novo “estado actual do DIP” mesmo perante a objecção persistente das potências nucleares.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990