De tudo o que estes olhos (agora operadinhos) já viram, apesar destes tenros 27 anos, ainda existem encontros que me deixam embasbacada. Confesso que sinto uma certa relutância em relação à aceitação desta espécie estranha e confusa (mas não rara), que normalmente habita nos hospitais. Há um trabalho de pesquisa que deveria ser feito (talvez se colocássemos algum chip para tentar perceber os seus movimentos e rotinas) porque, além de sabermos muito pouco sobre ela, não percebemos imediatamente quem pertence a este núcleo. Estes seres não são facilmente detetáveis.
Ao longo da minha vida, já me cruzei com alguns, por isso, penso que é seguro assumir que estão integrados na nossa sociedade e que existem em número elevado. Sou sempre apanhada de surpresa. Acredita, não é fácil estar a arder em febre e perceber que um deles está mesmo à nossa frente.
Encontrar um médico hipocondríaco não é coisa de meninos.
Não sei como é que acontece este cruzamento entre um médico e um hipocondríaco ao ponto de nascer um médico que é hipocondríaco e, sobretudo, não compreendo como pode esta espécie exercer. O incrível é que foi a própria pessoa que tem medo de todas as doenças do mundo que decidiu envergar por um mundo, onde, vê lá a coincidência, entra em contacto com todas as doenças do mundo.
Porquê? Não faço ideia. Se isto faz algum sentido? Nenhum.
Talvez, isto até seja um ato de coragem. Talvez estes médicos hipocondríacos queiram enfrentar de frente os seus medos. Por mais louvável que seja o ato, não o façam. Não enfrentem os vossos terrores porque isso significa que nós, os pacientes, sofreremos na pele as consequências da vossa audácia. Deixem-se estar a tremer debaixo das mantinhas, com medo que o bicho escondido vos coma, ao invés de nos aparecem à frente. É que, caraças, não há nada mais desmotivante do que conhecer-vos.
Imaginem o que é (e isto já me aconteceu várias vezes), o médico perguntar-me sobre o meu historial e, ao ouvir, “sobrevivente de linfoma”, cerrar automaticamente os olhos e a boca, abanando a cabeça, como se quisesse afastar a ideia de poder um dia ter essa doença. Afetado com a palavra cancro, o médico hipocondríaco, não consegue ter auto controlo que é como quem diz, calar a matraca.
E lá vem ele:
“Ui, ai, ai, Jesus, pois, cruz credo, fogo, sim, sim, terrível, epa, pois, há quanto tempo?”- eis os sons e as palavras soltas desbobinadas pela personagem que, aos saltitos na cadeira, como se tivesse o cu a arder, sofre só de olhar para mim.
Alguma coisa está errada, quando a pessoa que deveria descansar-nos é a mais assustada naquele consultório. Alguma coisa está errada, quando imagino aquelas mãozinhas suadas com o stress, a telefonarem à mãe, porque uma menina má está no seu gabinete a dizer-lhe coisas feias.
Há pouco tempo, numa consulta dentária, o dentista perguntava-me qual era a minha profissão. Disse-lhe que tinha um projeto que se chamava Cancro com Humor mas ele não ouviu a palavra humor. Focou-se no cancro e era vê-lo, todo nervoso, com o berbequim a voar de um lado para o outro, a praguejar coisas e a suar que nem um desgraçado. E ele nem iria usar aquela ferramenta. Neste caso claro que intervim imediatamente e descansei-o: “Oh, mas eu já estou bem! Há muitos casos de sucesso! O meu projeto procura transmitir esperança. É preciso ter esperança, não é?” – Mas, calma, não te precipites: não, não era a compaixão que me movia.
Era só mesmo o facto de estar com medo que me arrancasse um dente, quando só tinha mesmo ido fazer uma limpeza.
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