As pessoas que têm medo da felicidade costumam alertar-nos para que nunca voltemos ao sítio onde fomos felizes. Parece que temem rever memórias alegres, com receio de nunca mais as repetirem. Agem com cautela para não sofrerem depois, sem entenderem que já sofrem por se proibirem. “Nunca voltes ao sítio onde foste feliz” – dizem os assustados que preferem viver “razoavelmente”, ao invés de verem defraudadas as aflitivas expectativas.
Acho que temos de voltar sempre – ao sítio onde fomos felizes, para nos recordamos, sobretudo se nos tivermos esquecido, e ao sítio onde fomos infelizes, para que possamos fazer as pazes com ele.
“Eu já senti isto” – é doloroso visitar um local, uma memória e percebermos que foi tão bom ao ponto de se ter tornado irrepetível mas, por mais que pareça um contrassenso, é a única forma de vermos nascer em nós alguma esperança. Mesmo que seja irrepetível, lembrarmos que já nos sentimos transbordados, ajuda-nos a acreditar o quão é válido voltar a senti-lo. Nasce a crença de que somos merecedores. Podemos, pelo menos, tentar.
A sensação de termos vivido algo único e singular não tem de ser exclusiva.
Podes visitar o rio diariamente e, todos os dias, achares que aquele passeio é o melhor. Devemos voltar ao sítio onde fomos felizes porque isso significa que a felicidade existe. Existe porque eu já a conheci. Claro que não há como fugir da melancolia e da tristeza mas também não há como negar que o estímulo está lá. O sítio onde foste feliz ressoou de tal forma, que ponderaste não lá voltar – por isso, estás marcado. Se já foste feliz estás marcado. O molde está feito.
Mas já que fizeste a mala e estás de saída, depois de voltares ao sítio onde foste feliz, não te esqueças de parar naquele em que não foste. Volta lá. O desafio é mais penoso, mais exigente, porque sabemos que ao abrires as portas, não serás recebido com memórias aconchegantes e saudosistas. Terás até a tendência para cerrares os olhos com força, porque magoa muito olhar de frente. É normal. Sentir-te-ás abalroado por um camião de momentos difíceis. Vai doer tudo outra vez. Mas aguenta-te. Aguenta-te de pé e, a teu tempo, abre os olhos. Abre e encara. Olha para a tua ferida e vê-lhe o tamanho. Lembra-te que é uma recordação e que, apesar de viva, já não te pode fazer mal. Já saíste dali, já não és aquela pessoa. És só um visitante. Um visitante que está de passagem. Trazes a mala às costas, (porque andas sempre com tralha atrás), mas não irás ficar. Nem pensar. Vieste ali só mesmo fazer uma coisa:
Perdoar.
Lembro-me de ter escolhido estudar em Coimbra, exatamente por isso. Disse-o em voz alta. Quis fazê-lo. Detestava Coimbra. Coimbra magoava-me. Coimbra cheirava a quimioterapia. Coimbra cheirava a medo. Coimbra cheira a internamento. Coimbra cheirava a morte. Coimbra cheirava ao meu cabelo caído. Coimbra cheirava a agulhas. Não gostava de ir a Coimbra e só era feliz quando saía de lá. Mas depois voltei. Aos 18 anos, quis voltar a Coimbra. Voltei para criar novas histórias, novos cheiros, novos sabores e quis perdoar aquele caminho que fiz vezes sem conta – casa para Coimbra e Coimbra para casa. Fui absurdamente feliz em Coimbra, quando me matriculei na escola daquela cidade. Ri-me, apaixonei-me, sonhei, estudei, cresci em Coimbra. E ela deixou de ser assustadora. Não substituí umas recordações por outras, porque as antigas ainda existem mas, agora sempre que volto a Coimbra, emociono-me com saudades. São as recordações felizes que pesam mais. “Fui tão feliz aqui”, é o que me sai quando vejo o rio. Não só porque as memórias felizes são maiores, são melhores, mas porque perdoei as outras.
Não voltei só ao sítio onde fui infeliz. Ainda lá fui para ser feliz o dobro.
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