É um furacão no palco como é vivíssima a falar: os olhos pontuam as frases e a conversa é ritmada como uma dança. Foi música por acaso. Por vezes são as coisas que não estão inscritas inicialmente na vida que fazem todo o sentido.
Grande parte dos cabo-verdianos estão fora das ilhas. Provavelmente, ser de Cabo Verde é muito mais que ser de um local, pode ser também uma música?
Sim, eu sinto isso. Não cantaria da mesma maneira se tivesse nascido e vivido em Cabo Verde. Foi a saudade que espoletou esta minha vontade de cantar e conhecer Cabo Verde, foi esse facto de ter nascido fora que explica a minha música, e esta alimentou a minha visão da minha terra.
Aos 21 anos foi para Cabo Verde. Numa entrevista disse que se sentia estrangeira em toda a parte, mas que as pessoas, quando a viam, diziam-lhe: “Tu és daqui.” A música já a tinha aproximado?
Já tinha, mas foi um encontro importantíssimo, uma espécie de descoberta de um outro lado de mim, feito com as pessoas que eu sabia que existiam mas que ainda nunca tinha visto. Pessoas e coisas que eu já sabia que existiam e com as quais eu gostava de ter contacto. Depois de todo o imaginário que tinha criado na minha infância foi importantíssimo, finalmente, ter ido à minha terra.
O que a impressionou mais nesse choque com a realidade?
Inicialmente foi a pobreza e a secura da vegetação. Cheguei a São Vicente numa altura em que não chovia há muito, tudo estava completamente seco. Só se distinguiam as rochas no meio da secura. Eu já sabia da história de as pessoas ficarem à espera da chuva para ver as montanhas verdes. Mas não se via nem sequer aquela penugem verde que costuma envolver as rochas quando chove [e que deve dar o nome ao arquipélago]. Fiquei muito impressionada com a secura de tudo. Mas depois tive um momento de felicidade quando entrei no Mindelo e vi aquele mar muito azul, lindo. Eram estes contrastes da paisagem que me impressionavam muito: não tens nada e, de repente, vês um mar azul impressionante que te faz esquecer que não tens comida para comer. A realidade não é assim tão poética, mas é impressionante. A beleza da paisagem, a alegria das pessoas e a sua esperança que se renova sempre são o melhor que Cabo Verde tem.
O seu disco chama-se “Herança”. O que transmite na música?
Eu sou um exemplar dos emigrantes que voltaram à terra para resgatarem o que não viveram. É essa mensagem que posso deixar a muitos que têm a mesma história que eu: grande parte dos cabo-verdianos não nasceram na sua terra, muitos não vivem lá e alguns nem sequer a conhecem. O que deixo é a paixão pela nossa terra e a saudade por aquilo que nós nunca vivemos. Esta emoção forte que nos leva a procurar-nos a nós próprios, a procurar a razão de existirmos e a querer saber porque é que as coisas aconteceram assim. Porque é que eu sou negra e vivo numa terra de brancos? E muitas vezes estou assim meio perdida porque, no fundo, esta é também a minha terra, porque nasci cá, mas há coisas que dizem que não sou daqui. Mas de onde é que eu sou?
Não é possível ser negra e portuguesa?
É possível mas, do ponto de vista geográfico e histórico, os negros não são originários de Portugal.
Ironicamente, se não tivesse havido escravatura em Portugal, não teria havido cabo-verdianos, dado que as ilhas eram um entreposto no tráfico de escravos com África, Américas e Europa.
A origem dos cabo-verdianos é essa. Aqui se deram as misturas entre africanos e europeus que deram pessoas lindíssimas e misturas com negros de olhos azuis e cabelo encaracolado.
Essa mistura não está também espelhada na própria música de Cabo Verde?
Tem que ver com a história e com a nossa vivência. Nós andámos pelo mundo e fundimo-nos com outras culturas. A nossa música tem o violino europeu e os tambores africanos. Esta vontade de partilha e de troca faz de nós um país enriquecido. Na nossa música há música cubana, africana, brasileira, portuguesa, polaca, bebemos em todo o lado. E isso dá uma grande riqueza.
Sente saudades de Lisboa?
Sim, sinto saudades. Nasci aqui, vivi aqui, é impossível não ter saudades. Só não sinto mais porque venho cá muitas vezes.
Engraçado que se diz que só no português há a palavra “saudade”, mas no crioulo existe também a palavra “sodade”. É uma mera tradução ou deve-se a alguma coisa partilhada entre portugueses e cabo-verdianos?
Nós temos uma forte herança portuguesa e uma forte ligação a Portugal. A nossa língua oficial é o português. Não há muito para ir buscar. Em Santiago há o hábito de misturar palavras inglesas, mas a nossa herança cultural é portuguesa. A nossa palavra “sodade” é uma tradução do português, mas é óbvio que há uma história comum que nos faz entender a palavra, tanto do ponto de vista histórico como pelo facto de portugueses e cabo-verdianos serem povos com muitos emigrantes.
Foi importante ter conhecido a Cesária Évora?
Sim. Para uma miúda que tinha começado no mundo da música é fantástico, de repente, ver-me num palco com uma diva internacional que estava no auge do seu sucesso. Fiz alguns coros com ela, depois fiz as primeiras partes, e depois ouvia a loucura que era com ela. A Cesária Évora era recebida com aplausos de pé antes de o espetáculo começar. Esse era o início do espetáculo, eu nunca tinha ouvido aquilo em lado nenhum. Era impressionante a autenticidade e a atitude dela.
A primeira vez que se viram foi depois de um convite para jantar em casa dela em que você foi com a sua mãe?
Foi o primeiro contacto. A Cesária convidou-me depois do sucesso do meu disco “Nha Vida” a jantar em casa dela. Eu quase precisei de me beliscar. Não acreditava. Mas, no fundo, a minha vida na música foi assim. Só me aconteciam surpresas: primeiro descobriram que eu tinha voz, depois gravo um disco, depois convidam-me para cantar em Cabo Verde e, no final de tudo, a Cesária Évora convida-me para jantar – eu nem conseguia acreditar. Fomos. A Cesária recebeu-nos cheia de simplicidade. Eu não estava nada à espera. Pensava encontrar uma diva cheia de empregados, com eles a servir-nos. Mas não. A Cesária cozinhou, serviu à mesa e passou a noite a falar com a minha mãe e comigo de coisas simples da vida. Foi uma aprendizagem logo ao início muito importante: para sermos divas não precisamos de ter mil empregados. O dinheiro ajuda, mas convém sermos humanos com pés na terra. Isso foi uma mensagem que me ficou para a vida.
Como aconteceu essa descoberta de ter voz?
Foi uma surpresa. Estava para entrar para desporto e ia para dança. Mas só era possível ir se tivesse dança clássica. Como eu não tinha, não pude, e fui chorar no ombro de uns amigos que já dançavam. E eles convidaram-me para fazer uns espetáculos com eles. E o professor, o chefe do grupo, estava a gravar um disco. E ele disse-me se queria gravar um dueto e eu aceitei. Foi um sucesso em todos os países africanos de expressão portuguesa. Eu nunca tinha cantado na minha vida.
Isso com que idade?
Tinha 17 anos. Foi um estrondo. E fui fazer uma digressão por Angola.
Há males que vêm por bem: o não ter dança clássica permitiu descobrir uma cantora.
É verdade. Fui dar concertos. Entretanto, o Bonga também me convidou para cantar com ele. E um dia que eu estava a atuar apareceu um senhor de uma editora a dizer: “Tu não queres gravar um disco?” E assim foi, gravei um disco. Ainda estava a estudar e pensei que ia ser giro para mostrar aos meus colegas. Mas não conhecia compositores nem sabia como compilar e compor temas, então escrevi.
Escreveu as letras e como é que fez?
[Lura faz um gesto a apontar para a cabeça.]
De cabeça?
Sim, eu já era música antes de saber compor. Já tinha música dentro de mim e não sabia. É a única explicação que tenho para isso.
E o desporto acabou?
Foi acabando. Ainda me lembro de dar aulas numa piscina municipal. Mas a certa altura tive de optar, o meu chefe disse–me que ou escolhia o trabalho ou a música, não era possível estar semanas fora e deixar as crianças aprender com outra pessoa. Ainda estive um ano com dúvidas, para decidir. Mas depois escolhi a música.
O facto de ter tido uma vida complicada – o seu primeiro cachê foi para ajudar a sua mãe – deu-lhe algum conhecimento de vida?
Eu lembro-me de dizer a colegas meus que acho importante ter nascido pobre porque dou mais valor às coisas. O dinheiro é muito importante. Eu não digo que o dinheiro não dá felicidade. Dá, mas o facto de termos tido dificuldades dá-nos outra maturidade. Lembro-me que desde os 14 anos trabalho para ajudar a minha mãe e comprar as minhas coisinhas.