Um país de sentenças machistas

Um país de sentenças machistas


Tribunal Europeu acusa Portugal de preconceito por reduzir indemnização a mulher de 50 anos que ficou incapacitada de ter relações sexuais. Penalista ouvida pelo SOL garante que este não é um caso isolado e que a justiça portuguesa mantém traços machistas.


«Não deve ser esquecido que na altura da operação, a queixosa tinha já 50 anos e dois filhos, ou seja, uma idade em que a sexualidade não tem a mesma importância que assume em idades mais jovens». Não deve ser esquecido, deliberou o Supremo Tribunal Administrativo (STA) e, de facto não foi.

Mais de vinte anos depois de Maria Morais ter sido vítima de negligência médica durante uma operação que a deixou incontinente e incapaz de ter relações sexuais, o caso voltou à justiça e sofreu uma reviravolta.

Em 2013, a Maternidade Alfredo da Costa foi condenada a pagar 172 mil euros por negligência, uma vez que foram retiradas à doente as duas glândulas de Bartholin, algo que não estava previsto, e que a deixou numa situação em que andar, sentar e ter relações sexuais causaria dores e desconforto. O hospital recorreu da decisão e o STA, em 2015, reduziu o valor para 60 mil euros. Para justificar a descida, o tribunal considerou que a importância da sexualidade «vai diminuindo à medida que a idade avança».

Justiça no masculino

Este tipo de justificações ditaram a diminuição da indemnização de 80 mil para 50 mil euros por danos emocionais e de 16 para 6 mil euros destinado a pagar à empregada doméstica, uma vez que o tribunal considerou que além de não estar provado que Maria não conseguia desempenhar tarefas domésticas, tendo em conta a idade dos filhos, «precisava apenas de tratar do marido» e, por isso, não precisaria de ajuda a tempo inteiro. Esta semana, o Tribunal Europeu veio discordar da setença e condenar Portugal, considerando que ainda prevalecem preconceitos ligados ao género no sistema judicial português.

«O machismo não é um exclusivo português», lembra a penalista Inês Ferreira Leite, «mas a verdade é que este tipo de discriminação é transversal a muitos crimes cometidos no nosso país, cujas vítimas são mulheres».

A professora da Faculdade de Direito de Lisboa garante que a lista é longa, mas destaca dois exemplos. O primeiro é referente à violação de uma criança de sete anos por um rapaz de 17. «A menina pediu boleia de bicicleta ao rapaz, que acabou por a violar», explica Inês. O jovem foi condenado a uma pena suspensa, depois do tribunal alegar que o facto da criança ter pedido boleia tinha contribuído para o crime. «Mas é errado pensar que estes desfechos acontecem somente quando o coletivo de juízes é masculino», esclarece. O outro é o processo que invoca é o caso recente de um médico psiquiatra que violou uma paciente grávida de oito meses. Segundo a maioria de juízes, grupo no qual se incluía uma juíza, agarrar a cabeça de uma mulher, obrigando-a a fazer sexo oral não era ato suscetível de ser enquadrados como violento.

Pelo discurso de Inês, os exemplos não têm fim e, neste contexto, é impossível não lembrar um acórdão que, em 1989, absolveu dois homens que violaram duas jovens, com o argumento de que estas foram «pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado ‘macho ibérico» . Mas mesmo nos casos em que a discriminação não é tão declarada, é visível em pormenores da fundamentação, refere Inês. É comum encontrar argumentos como «não quer cozinhar», «não quer ter sexo com o marido» ou «sai muito à rua» como argumentos para atenuar a pena.

Tribunal condena

Maria Morais vai agora receber 3250 euros por danos não patrimoniais e 2460 euros para a cobertura de custos judiciais. O Estado tem agora três meses para decidir se aceita a decisão ou apresenta um recurso.