Portugal amordaçado


Costa criou uma mordaça em relação às informações sobre Pedrógão Grande. Faz lembrar a reação do Estado Novo às cheias de 1967


A notícia de que existiram mais vítimas do incêndio de Pedrógão Grande do que as 64 que foram reveladas pelo governo representa talvez o maior escândalo na política portuguesa desde o início do regime democrático. É com perplexidade que ficámos a saber que na contabilidade oficial só se incluíram as vítimas de queimaduras ou de intoxicação pelo fumo, deixando de fora casos como o de uma mulher que morreu atropelada a fugir do incêndio. Com base nesse critério, também se excluiriam das vítimas do 11 de Setembro as pessoas que se atiraram das torres abaixo antes de serem atingidas pelas chamas.

O governo até poderia querer elaborar os tais “critérios definidos” para distinguir entre vítimas directas e indirectas do incêndio, mas tinha obrigação estrita de revelar qual o número destas últimas. Mas, mais uma vez, prefere esconder a verdade aos portugueses. António Costa proclama que “já está tudo esclarecido” relativamente à contabilização das vítimas e o Ministério da Administração Interna tem o descaramento de publicar no Twitter o seguinte: “64 vítimas mortais, é este o número validado pelas autoridades competentes. A lista das vítimas esta segredo justiça” (sic). Mas desde quando é que o segredo de justiça pode ser razão para que o povo deixe de ser informado sobre o real número de vítimas de um incêndio?

António Costa criou uma verdadeira mordaça em relação às informações sobre Pedrógão Grande, tendo tido inclusivamente o descaramento de a justificar com o facto de que “a informação devidamente organizada e estruturada é uma mais-valia para todos”. Tudo isto faz lembrar a reacção do Estado Novo às cheias de 1967, tentando a todo o custo esconder a dimensão da tragédia e a ineficácia total das autoridades. Como Mário Soares escreveu no “Portugal Amordaçado”: “Portugal é, pois, uma terra onde, por princípio, só uma opinião tem direito de se exprimir livremente: a oficial.” Não existe hoje censura à imprensa como naquele tempo, mas a sonegação de informação pelo Estado acaba por ter o mesmo efeito. Afinal, não estamos há mais de um mês a ignorar as denominadas “vítimas indirectas” de Pedrógão Grande?

Mas há alguém que o povo elegeu para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas. Estranhamente, no entanto, o mesmo só aparece em operações mediáticas, não tendo qualquer intervenção no que se impunha. É assim que reúne o Conselho Nacional para discutir “dados da situação política atinentes às Forças Armadas”, mas nada diz sobre o roubo de Tancos. Da mesma forma, o Conselho de Estado foi transformado numa sala de visitas de responsáveis europeus, indo agora chamar Juncker, sabe-se lá para quê. Já as vítimas, essas, permanecem esquecidas na frieza dos números resultantes dos “critérios definidos”.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990