Não conseguir falar de Alfragide é racismo


Portugal é um país racista onde quase todas as conversas começam com um “eu não sou racista, mas”. Como é do conhecimento público, todo o homofóbico “até tem amigos homossexuais” e todos os machistas “até são favoráveis a que homens e mulheres tenham os mesmos direitos”.


Portugal é um país racista onde quase todas as conversas começam com um “eu não sou racista, mas”. Como é do conhecimento público, todo o homofóbico “até tem amigos homossexuais” e todos os machistas “até são favoráveis a que homens e mulheres tenham os mesmos direitos”. A luta contra a homofobia teve enormes avanços nos últimos 20 anos e a luta feminista também – pelo menos no que toca à ascensão de mulheres a lugares de poder, menos no que toca à violência doméstica. Segundo as estatísticas da polícia, o sítio mais perigoso que uma mulher pode frequentar sozinha é, provavelmente, a sua própria casa.

Os assassinatos de mulheres – o femicídio – não acontecem nos bairros “perigosos” nem são perpetrados por estranhos. Na grande maioria dos casos, as mulheres assassinadas foram-no por namorados, maridos, ex-maridos, etc. Das várias fobias contra o outro existentes em Portugal, a fobia da cor da pele é aquela que é mais insistentemente negada pelos poderes. Existe um trauma histórico de país colonizador – onde os colonos trataram os naturais como só Deus sabe – que tenta esquecer o seu passado. Mas é muito grave que os poderes públicos não reconheçam a existência de racismo, como o fizeram com a homofobia ou o machismo.

Em termos de racismo, o estado de denegação é impressionante. É mais confortável para as instituições viver com o mito do luso-tropicalismo que Salazar acalentou e a democracia absorveu. Num país normal, os partidos estariam a discutir o que se passou na esquadra de Alfragide e a tenebrosa acusação do Ministério Público sobre os insultos racistas e as agressões físicas de que vários polícias são acusados em relação a jovens negros. Mas isso não aconteceu. No debate do estado da nação falou-se de Pedrógão Grande e Tancos e da PT/MEO/Altice. Se os poderes públicos continuarem a olhar para o racismo como se não existisse, estão a criar as condições para que apareçam mais Andrés Venturas a acusar “os ciganos”. Afinal, ele ainda nem disse metade do que disseram ou fizeram os polícias de Alfragide. Mas, atenção, pode vir a dizer.