Contradições, indignidades e patranhas


A palavra de ordem da direita nos tempos que correm parece ser: “Destruama geringonça!” Escrever contra ela com muita fúria faz parte da empresa


Referindo-se à crónica que publiquei no i de 7 de Julho passado, intitulada “Caçadores de cabeças”, o director executivo deste jornal, Vítor Rainho, proclamou com ironia num editorial: “Haja liberdade de pensamento.” Certamente por achar que não é habitual criticar, como eu fiz, outros colunistas deste jornal, e ainda por cima o seu director executivo. Mais dura, porém, foi a resposta que me deu o prof. dr. Luís Menezes Leitão, catedrático da Faculdade de Direito em que me formei nos idos de 1968. A resposta que me dirigiu está cheia de contradições, indignidades e patranhas, como passo imediatamente a demonstrar, fazendo uso da minha “liberdade de pensamento”:

– Nunca me passou pela cabeça que um colunista que critica o que escreve outro colunista do mesmo jornal esteja a violar um “espaço de liberdade” e a pôr em causa o “direito à opinião” do colunista criticado. Não sei se o dr. Leitão se dá conta da tão óbvia contradição em que cai;

– O dr. Leitão afirma que “ninguém pediu a cabeça de ministros” e que ele apenas exigiu “que os ministros tirassem as devidas consequências do que se passou e saíssem, para evitar um colapso do Estado ainda maior”. O dr. Leitão é, convenhamos, um grande brincalhão;

– Não incluí o dr. Leitão em “seita” alguma. Limitei-me a salientar que os comentadores e os políticos de direita que têm reclamado demissões de ministros, por causa do “trágico incêndio” em Pedrógão e do “monumental roubo” em Tancos, se comportam metaforicamente como “caçadores de cabeças”. Mas o dr. Leitão não resistiu à laracha da cabeça “em cima do pescoço”;

– O dr. Leitão adverte-me por eu ter citado o título de um filme de Sam Peckinpah (“Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia”) em vez de citar o episódio do Evangelho no qual Salomé pede a Herodes a cabeça de João Baptista. Se o dr. Leitão acha mais natural que eu o compare a Salomé, tudo bem. Nada tenho contra a sua opção pela mudança metafórica de sexo;

– O dr. Leitão entra no domínio da patranha ao afirmar que considerei o “trágico incêndio” e o “monumental roubo” – se é que um roubo de armas no valor de 34 mil euros é monumental – como “perfeitamente desculpáveis”. Em nenhuma passagem da minha crónica fiz tal afirmação ou sugeri tal conclusão. O dr. Leitão mente descaradamente. Seja sério, senhor professor;

– Lamento que o dr. Leitão não se tenha apercebido da ironia e sarcasmo de Camilo contidos na frase que citei (“fomes de justiça e sedes de lachrima Christi”), mas é claro que ele não é obrigado a conhecer a obra, o estilo e o espírito de um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos. O dr. Leitão prefere, manifestamente, citar os Evangelhos, e está no seu pleno direito. Tenho, aliás, na minha biblioteca diferentes edições da Bíblia, e já li um par delas de fio a pavio, com prazer, apesar de não ser católico, nem protestante, nem crente, nem beato, nem santo;

– Infelizmente, o Doutor Leitão foi incapaz de resistir à demagogia e fugiu–lhe o pé para a indignidade quando me propõe que vá “começando a contar de uma a 64 as vidas que se perderam em Pedrógão Grande”. Revela falta de vergonha, desrespeita os mortos, distorce escandalosamente o que escrevi e porta-se como um pantomineiro, o que não é digno de um professor catedrático;

– Mas pergunto: será o dr. Leitão um bombeiro que se desconhece e que seria capaz de enfrentar as 300 descargas eléctricas que se abateram sobre a região de Pedrógão, e de prever e evitar os efeitos do downburst que esteve na origem das dezenas de mortos na fatídica estrada?!

– O dr. Leitão diz “que estamos a assistir, com o governo da geringonça, ao verdadeiro colapso do Estado, especialmente nos sectores mais essenciais ao seu funcionamento”. Pelos vistos, para o ínclito catedrático, a reversão dos salários cortados pelo anterior governo, a redução substancial do défice orçamental, a significativa diminuição do desemprego e a criação de mais empregos, assim como o aumento do investimento e a grande subida da taxa de crescimento – resultados obtidos pelo actual governo – não pertencem ao sagrado domínio dos “sectores mais essenciais”;

– Já percebemos que o dr. Leitão é um exagerado. Demitiram-se dois generais e ele já escreve que “no Ministério da Defesa assiste-se a uma debandada contínua de generais”. Será que iremos assistir a um remake do Movimento das Espadas de 1915, que pariu a curta e ridícula ditadura do general Pimenta de Castro?! E será que o dr. Leitão já está a esfregar as mãozinhas?!

A palavra de ordem da direita nos tempos que correm parece ser: “Destruam a geringonça!” Escrever contra ela com muita fúria faz parte da empresa. Mas a coisa não está fácil. Hoc opus, hic labor est, como diziam os latinos. Que o mesmo é dizer que aqui é que a porca torce o rabo…

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990