Administração independente em striptease


Em quase todos os países da Europa e da América do Norte, os reguladores assumem uma posição de reserva moral. São individualidades que não temem o futuro, que encaram o exercício sem a necessidade de provarem que ainda podem ser mais alguma coisa no tempo seguinte


A consagração anacrónica da “administração independente”, como Vital Moreira ou Blanco de Morais consideram, tem uma previsão constitucional muito incomum. O n.o 3 do artigo 267.o da CRP diz só: “A lei pode criar entidades administrativas independentes.” Ora, os constituintes decidiram abrir a porta, escancará-la mesmo, sem lhe dedicarem as baias que importavam.

As autoridades independentes, como bem refere Bacelar Gouveia, têm uma longa vida. Esses Estados Unidos, de onde sobram pensamentos sobre as ciências da administração que moldam o mundo há dois séculos, deram à administração estadual a primeira ARI, a Interstate Commerce Commission, uma “moção de censura” ao presidente Harrison relativamente à política que advogava, centralista e pública, de transportes.

Até aos tempos posteriores à ii Guerra Mundial, só por lá se consagraram essas novidades, mas o crescimento dos mercados, o desenvolvimento acelerado da circulação de capitais e a apetência destes por monopólios naturais transferiu a mecânica para o Velho Continente. Nisto tudo confirmamos o tempo britânico, dado a copiar à sua antiga colónia e, mais tarde, fruto da canibalização das instituições europeias pelos interesses neoliberais, também a Europa unida partilhou o trilho.

As ARI, de onde saíram as entidades reguladoras, foram uma espécie de biombo para que se aparentasse o controlo público da decisão privada. Tal foi comprovado com a crise financeira do final do século passado.

Em Portugal, as ARI são de vários formatos. Tanto se identifica esse património jurídico na Comissão Nacional de Eleições como na Comissão de Mercados. E esse é um problema. Mas a discussão pública só se queda perante os reguladores porque estes foram, ainda são, os para-ventos das decisões e interesses privados.

A lei-quadro que vigora não é, verdadeiramente, uma lei-quadro. Ela é uma espécie de estatuto menor que deveria atravessar as entidades de regulação. Mas nem isso se conseguiu.

Indicamos alguns exemplos. As entidades reguladoras deveriam observar, nos seus “corpos sociais”, um conselho geral que integrasse os operadores e os consumidores. Só assim se poderia ponderar o sentimento geral, observar sindicância permanente. A ANACOM, essa entidade com milhões de conflitos, dispensou esse ente. Os reguladores têm obrigações de Estado que devem cumprir. A inação perante a captura por regulado obriga à cessação de funções dos dirigentes. A ANAC não tem essa obrigação estatutária, uma vergonha. A lei obriga à transparência das carreiras e remunerações da estrutura interna. A ERSAR não cumpre cabalmente essa obrigação.

Perante tudo isto, o que poderemos dizer da nossa regulação?

A regulação portuguesa viveu um primeiro período de relativa independência até ao final dos anos 1990. Havia um entendimento sobre o modelo e havia uma purificação das máquinas. Havia até uma espécie de enamoramento pela causa. Depois disso, olhando para as escolhas para os órgãos sociais das ARI, a degradação da atividade regulatória foi sendo cada vez maior.

Há quem ponha em causa a escolha de personalidades da política para o exercício desta atividade. Pela nossa experiência, sempre dizemos que não vem daqui o mal. O mal vem da capacidade de liderança, de autonomia pessoal, de independência relativamente aos setores regulados. E os políticos sempre foram os mais sufragados publicamente e sempre se sujeitaram aos mais elevados critérios de sindicância. O problema está muito nos que entram mudos e saem calados.

Em quase todos os países da Europa e da América do Norte, os reguladores assumem uma posição de reserva moral. São individualidades que não temem o futuro, que encaram o exercício sem a necessidade de provarem que ainda podem ser mais alguma coisa no tempo seguinte. Ora, em Portugal, por decorrência da realidade incipiente da administração não sujeita a tutelas políticas, por inexistência de contratos de gestão claros, por degradação da vida governativa que assume, em muitos tempos, a inexperiência juvenil, tem havido uma instabilidade na regulação e uma desgraduação dos aparelhos técnicos. Talvez não seja uma preocupação dos portugueses a realidade que vivemos, mas é um grave problema para as suas vidas, para as suas economias familiares e para os seus direitos.

 

Deputado do Partido Socialista