Caçadores de cabeças


É impressionante a violência verbal e o catastrofismo dos políticos e comentadores que odeiam a esquerda, sobretudo os acordos entre PS, BE, PCP e PEV que viabilizam este governo e que eles consideram uma fraude


Os resultados económicos e financeiros do actual governo têm sido de tal modo positivos (défice, desemprego, investimento, crescimento, etc.) que os partidos da direita, assim como os vários jornais e jornalistas que a apoiam, já desesperavam. Veio, finalmente, um trágico incêndio (atiçado por um downburst fulminante e quase 300 descargas eléctricas), seguido de um monumental roubo de armas e munições dos paióis da base militar de Tancos, e tem sido um fartar vilanagem. O mínimo que essa conjugação de vontades reclama são as cabeças dos ministros da Administração Interna e da Defesa. Ainda ninguém apareceu a exigir “tragam-me a cabeça de António Costa” – parafraseando o título de um dos magníficos filmes de Sam Peckinpah, “Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia” (de 1974, com o seu actor fetiche, Warren Oates) –, mas pouco faltará.

É impressionante a violência verbal e o catastrofismo dos políticos e comentadores que odeiam a esquerda, sobretudo os acordos entre PS, BE, PCP e PEV que viabilizam este governo e que eles consideram uma fraude (talvez até um perigo para a sobrevivência de “criancinhas ao pequeno-almoço”). A verdade é que são esses acordos que têm permitido uma governação bastante positiva e estável, apesar de algumas inevitáveis discordâncias que não põem em causa a continuidade do executivo. Parafraseando livremente Camilo, que falava em “fomes de justiça e sedes de lacrima Christi”, eu diria que Passos, Cristas e os jornais de direita (quase todos) estão cheios de fomes de carne assada e sedes de sangue aos borbotões, metaforicamente falando, está claro!

Para não ir mais longe do que este jornal, o seu director executivo, Vítor Rainho, escreveu há dias, num editorial catastrofista, que “o país está a saque” (e não só os paióis de Tancos), explicando que “os carros e facas usados para matar inocentes” na Europa “revelam as limitações” dos “adeptos do Estado Islâmico” –, de onde se concluirá que o roubo de armas e munições dos paióis de Tancos terá vindo mesmo a calhar. Já o colunista Luís Menezes Leitão vai ao ponto de afirmar que Portugal é “um Estado falhado” e acrescenta: “Aquilo a que assistimos com o governo da geringonça é ao verdadeiro colapso do Estado, especialmente nos sectores mais essenciais”. A colunista Graça Canto Moniz sentencia que a “sobrevivência da geringonça, que dá surpreendentes mostras de união”, acontece “em detrimento do interesse público”. E o colunista João Lemos Esteves interroga-se, cheio de esperança: “António Costa: o princípio do fim da maior fraude da política portuguesa?”.

Só estavam mesmo a faltar os militares que queriam fazer o remake do Movimento das Espadas, de Janeiro de 1915, que deu origem à ditadura de 112 dias do general Pimenta de Castro – uma “ditadura de pigmeus”, chamou-lhe Alexandre Braga –, com um governo “cujos ministros eram na sua maioria uns lunáticos”, como dizia António Cabral. Pergunto a esses militares se era o ministro da Defesa que tinha a obrigação de remendar o buraco na rede à volta da base militar de Tancos e se era ele que devia garantir a frequência das rondas para vigiar e fiscalizar os seus paióis?

Atente-se, porém, nos casos de outros países. Apesar da insegurança e dos atentados terroristas em Londres e Paris, alguém ouviu as oposições reclamarem as cabeças de ministros?! E apesar das calamidades na Austrália (gigantescos e mortíferos incêndios ano após ano) ou nos EUA (ruptura de diques em Nova Orleães que causou milhares de vítimas, gigantescos incêndios todos os anos), alguém quis cortar as cabeças de ministros – ou do próprio presidente, no caso dos EUA?!

Só mesmo em Portugal é que assistimos a este triste espectáculo das oposições, dos jornais e dos jornalistas de direita a assumirem o papel de caçadores de cabeças ministeriais, com dois objectivos que não iludem ninguém: por um lado, enfraquecer e dar cabo deste governo de esquerda; por outro lado, passar à frente dos inquéritos que visam o apuramento das responsabilidades, que demoram necessariamente algum tempo. Mas eles querem lá saber dos inquéritos! Querem é deitar abaixo este governo e fragilizar e endireitar o Presidente da República (que é o comandante supremo das Forças Armadas). Se Marcelo e António Costa cederem, cometem um erro de palmatória!

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990