1. Há muito que venho escrevendo neste espaço que este é um governo de água doce. Navega com à-vontade na calmaria. Mas nunca teria capacidade para liderar o país em circunstâncias de mar revolto.
A minha convicção fundou-se em dois ou três factos. Primeiro, António Costa cometeu um pecado capital quando se transformou em primeiro-ministro mesmo despido da principal legitimidade de todas: a do voto. E se a opinião pública e a oposição ultrapassaram esse argumento na formação do debate político, dentro da sua coligação tem sempre havido alguém que lhe lembre que o PS dependeu mais dos partidos à sua esquerda do que dos portugueses para ser governo. Cada chantagem dos partidos à esquerda é um lembrete aos socialistas sobre a quem devem o poder.
Isso leva-me à segunda razão: António Costa foi adotado por uma criatura política nova, a coligação das esquerdas. Por estarmos no domínio do experimentalismo parlamentar, esta coligação seria sempre mais conservadora do que reformista. É aquilo a que temos assistido. A política de rigor orçamental, tal como a política para o crescimento assente nas exportações e no investimento, ambas herdadas do governo anterior, não mudaram substancialmente. Elas foram apenas enxertadas de algumas revogações e reversões, e pontuais aumentos de rendimentos só para alguns. Em tudo o resto não há uma grande novidade, até porque a tal coligação depende de partidos que se inspiram e defendem regimes do passado que em nenhum caso deixaram boas memórias aos seus povos.
O mundo mudou, mas a atual maioria mantém-se sem entender os novos tempos. Ou melhor, tentam mudar a realidade acentuando a pós-verdade e reinventando a política das “narrativas”.
Terceiro, quem conhece António Costa sabe que o seu perfil político é o de sobrevivente. É líder apenas e só nas circunstâncias da sua própria salvação. Costa não é, nunca foi, um reformador. Tem dificuldade em ter iniciativa política quando a realidade assim lho exige.
Herdando as finanças públicas em ordem, uma economia a crescer, um Presidente da República com sentido de Estado, um sindicalismo amansado pelo PCP e uma Europa que se virou para problemas mais prementes (como o terrorismo, o populismo ou mesmo a hipótese de desintegração do euro), Costa surfou a onda e escapou a todas as crises (mesmo as trapalhadas criadas pelo seu governo). Vestiu sempre a narrativa do otimismo militante.
2. Os fogos no centro do país, a maior tragédia deste século, e o roubo de material de guerra em Tancos, o maior golpe do século na Europa, mudaram o ciclo porque expuseram a incapacidade para governar nas horas más. Quando o país mais precisa de liderança, de decisão e de vigor, o governo desaparece. Passa a culpa, descobre nova narrativa. Como se o exercício do poder se resumisse a dar a cara pelas boas notícias ao mesmo tempo que se despacham as más para as costas dos antecessores. Quando o país mais quer explicações e responsabilidades, o governo preocupa-se em mandar realizar focus groups e sondagens momentâneas, na procura desesperada de criar novas narrativas. Quando o país mais precisa de ação política, o governo fica paralisado, titubeante e baralhado enquanto não encontra a narrativa. Por isso diz hoje uma coisa e amanhã outra. Se já andava sem norte, agora ficou sem sul, sem este e sem oeste. Perdeu todos os pontos cardeais.
Em Pedrógão perderam-se 64 vidas. Em Tancos roubaram-nos armas que podem fazer perigar muitas mais. O país não pode, em circunstância alguma, ser complacente com as maiores falhas de segurança e defesa nacional na nossa história recente. As pessoas precisam de confiar no Estado e nas suas instituições. E um Estado que não é capaz de proteger as pessoas e os seus bens, um Estado que não é capaz de proteger os seus arsenais (e dos aliados da NATO que nos confiaram as suas armas!) é um Estado que falha nas suas duas missões existenciais: defender os cidadãos e o território.
Perante isto, duas crises extraordinárias, o primeiro-ministro partiu para férias. Compreendo que tente normalizar a situação mantendo a sua rotina estival. Mas só essa simples tentativa mostra que ele não percebeu o essencial: estamos perante duas crises de Estado em que tudo o que podia falhar falhou. Não há nada de normal nisto. E se no meio de tudo isto acharmos que está tudo bem, então o país estará mais perto do que eu pensava da normalização da anormalidade. Porque não percebeu isto, o otimismo do PM na opinião pública transformou-se: já não é militante, é arrepiante.
3. Mas, quando tudo corre mal, procura–se o conforto no focus group e na sua retórica marketeira: “à justiça o que é da justiça”, “a culpa é do governo anterior”, “agora não é tempo de discutir política” e por aí adiante. Ai o que não diria o anterior líder da oposição. O que não diriam os “ferozes” homens e mulheres de esquerda. Parece que foi noutra vida. Mas não foi. Os políticos ferozes de ontem são os mesmos políticos fofinhos de hoje.
Escreve à quarta-feira