Pedrógão Grande. O quartel que reúne a solidariedade de um país

Pedrógão Grande. O quartel que reúne a solidariedade de um país


Ninguém consegue falar em números com medo de ser injusto. A comida, os garrafões de água, a roupa e os medicamentos chegam às toneladas para saírem nas mochilas e bolsos dos bombeiros que aqui vêm para recuperar energias


Onde era suposto estarem estacionados os carros de bombeiros, quase não se vê um metro quadrado de chão livre. Desde sábado que os carros não param aqui, sinal de que o fogo ainda não deu tréguas a Pedrógão Grande. Desde sábado que este quartel serve de abrigo a toneladas de donativos que, ainda hoje, não páram de chegar. Desde sábado que, fazendo as contas, Diana dormiu três horas.

Saiu de Lisboa com o corpo de bombeiros onde é voluntária há 13 anos mal viram que o fogo estava a ficar descontrolado. Começou por ir para o terreno, onde viu “coisas que ninguém quer ver” e voltou para o quartel, onde organiza uma equipa que foi crescendo a cada dia. Está habituada a incêndios e lembra até uma situação em que a salvação foi atirar-se para uma piscina e deixar arder. “Mas nunca vi nada assim, nada com tantos mortos”.

Também Carlos David prefere não se lembrar do que viu quando o fogo acabou para dar lugar à morte. “Um banco de trás com três crianças, pessoas apanhadas a sair do carro, tudo carbonizado”. As palavras confundem-se com as lágrimas. “Mas não vamos pensar nisso, agora há que ganhar forças para ajudar quem precisa”. Quando volta à força que o caracteriza, o presidente da direção dos bombeiros de Pedrógão Grande volta à roda viva de telefonemas, pedidos e perguntas lançadas em todas as direções. “Para onde levo isto”, pergunta o último escuteiro da fila, com uma palete de leite. É hora de reorganizar.

O quartel de Pedrógão Grande tem sido o foco principal da solidariedade. É aqui que chega tudo e é daqui que sai tudo, seja para os bombeiros, para os civis ou para outras corporações onde pouco chega. Neste momento não falta nada e não houve pedido que não tivesse resposta em forma de sacos cheios e carrinhas atestadas de mercadoria. “O português tem o gene de ajudar. Às vezes é preciso é acordá-lo”, garante. É por isso que prefere não avançar com quantidades, “porque se pecar, é por defeito”.

No quartel estão empilhados quilos de fruta, sacos de cereais, bolachas e bebidas energéticas, caixotes de pão de forma e pacotes de leite. As garrafas de água já se transformaram neste momento numa alta torre de plástico. “Até já temos a mais”, refere, com a garantia de que tudo vai ser entregue, mesmo que posteriormente, a quem precisa. “É que isto está longe de acabar”, lamenta.

Comida quente Estão 40 graus. Mas a verdade é que não há nada mais reconfortante do que uma refeição quente, mesmo que esse conforto venha servido em pratos de plástico.

Nas tendas verdes em frente ao quartel está montada uma verdadeira cozinha. E é o cabo Filipe que está à frente dos fogões. Sim, no plural. Isto de alimentar mais de mil bocas por refeição obriga à multiplicação dos materiais.

Os toldos de plástico e o calor das panelas fazem com que dentro desta cozinha improvisada a temperatura suba bem além do que o termómetro regista cá fora. Os vinte fuzileiros da marinha destacados para este trabalho preferem ignorar o calor para se concentrarem na hora. É quase meio-dia e os bombeiros vão começar a chegar.

Filipe desdobra-se em três e entre cozer batatas e ovos, descascar batatas e abrir latas de atum, organiza a equipa que já sabe que nesta cozinha se serve rápido e bem. “Fazemos a chamada ‘comida de tacho”, explica. Tudo na mesma panela facilita o trabalho e ajuda a criar pratos que sirvam de combustível a quem chega cansado. “Até podia fazer um bife com batatas fritas e ovo estrelado, mas ‘tá a ver a quantidade de loiça a que isso obriga?”. É por isso que o menu do dia está bem longe do magret de pato ou o bacalhau com natas conhecidas, para os amigos, como as suas especialidades. “Aqui não varia muito dos guisados, da jardineira ou das massas”. Ninguém parece reclamar e poucos devem ser os que sabem que Filipe trata das refeições por obra do acaso.

Com 17 anos trabalhava numa fábrica de plásticos em Vinhais até ouvir falar na marinha. Decidiu inscrever-se, mas na hora de preencher as opções não percebeu o significado das siglas e num pim-pam-pum escolheu TFH, sem saber que este era o código para a vaga de cozinheiro que restava e para a qual estava destinado. “Ganhei-lhe o gosto e hoje tanto cozinho para um como para quinhentos”, garante. Ainda bem, porque segundo os números do sargento Nogueira, se ontem foram servidos 1057 jantares, hoje estão previstos, no mínimo 1100. O homem das contas e da coordenação da equipa continua a debitar números: com eles trouxeram mil quilos de carne e 1300 quilos de produtos secos como massa, farinha e enlatados. Já tiveram um reforço de mais 800 quilos de congelados e 600 quilos de secos. “E não vai chegar”, garante. Esta é uma equipa que veio preparada para ficar até hoje, mas que já antecipa uma estadia prolongada. “Olhe para ali”, e aponta para um horizonte cinzento que há muito substitui o verde que costumava pintar Pedrógão, “isto está longe de acabar”.