Trissomia 21. Quando o cromossoma extra é o da dança

Trissomia 21. Quando o cromossoma extra é o da dança


São dez os bailarinos, todos com trissomia 21, que vão animar a gala do 55.º aniversário da APPACDM. O i foi assistir a um dos ensaios e comprovou que a arte não se mede em cromossomas


Quem cresceu com um primo como o Germano habituou-se a andar devagar na rua para acompanhar os passos mais lentos, habituou-se a festejar cada frase dita de forma a que todos na mesa a percebam e, o melhor, habituou-se a receber abraços sem porquês. Quem cresceu com um primo como o meu sabe o que é trissomia 21 mesmo antes de ser tema de novela da Globo e APPACDM há muito que passou a palavra dita sem gaguejar. Para quem não tem a sorte de ter um Germano na vida, damos uma ajuda. Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental é a desconstrução da sigla de uma instituição que decidiu comemorar os 55 anos oferecendo aos miúdos que apoia a oportunidade de fazer aquilo de que eles mais gostam.

“Temos teatro, temos culinária, temos natação. Mas dançar é o melhor de tudo”, explica Marta. “Faz bem”, acrescenta Carina, “ao corpo e à alma.” E é por isso que treinam há semanas para a gala de aniversário que acontece hoje na Fundação Champalimaud. “Nervoso? Não! Vai correr bem”, garante Pedro, enquanto arruma meticulosamente na caixa de cartão os sapatos que acabou de usar para dançar o tango.

Carina é o seu par nesta música e na vida. “Namoramos quase há um ano”, conta, puxando-a para mais perto. “Podemos fazer só mais uma vez?” Taísia, a professora, ainda tenta pôr um travão no entusiasmo, mas não vale a pena. Pedro volta à caixa de papel e em dois segundos já tem os sapatos de verniz calçados novamente. Carina, na outra ponta do palco, posa elegante em cima dos saltos altos pretos. A música começa e serve de embalo para que, com passos certeiros, se aproximem um do outro e permaneçam juntos até ao fim da canção. Ainda os últimos acordes se ouvem na sala e já a plateia de colegas aplaude de pé a performance. Pedro e Carina lançam-se de peito aberto e não há quem não fique sem um abraço. Daqueles de que falava no início.

Pé de Dança Na APPACDM de Lisboa, a dança começou como forma de terapia, mas não demorou muito até que fosse assumida como arte. “Apercebi-me do potencial artístico que eles têm. São miúdos que gostam de ter público, que gostam de mostrar que conseguem”, explica Taísia Espadinha, a educadora social que ajudou a criar, em 2005, o grupo Pé de Dança.

Fala em “miúdos” mesmo que as idades vão dos 30 aos 40, disfarçadas em traços que fazem deles miúdos para sempre. Ensaiam três vezes por semana, para marcar um ritmo que já lhes é natural. “A dança é uma forma de expressão e, para eles, que têm dificuldades ao nível do discurso, acaba por ser também um meio de comunicação”, refere.

Para a gala de aniversário, o grupo de dez bailarinos tem quatro músicas preparadas e para uma delas contaram com a ajuda de um coreógrafo especial que teve nota positiva da ala feminina da sala. “O Cifrão é lindo”, garante Marta. “E dança bem”, acrescenta Catarina, tentando dar um ar profissional à coisa, até porque é de dança que estamos a falar.

Vai daí que a próxima coreografia a ser ensaiada é exatamente a idealizada pelo bailarino. “Agora é a dos cogumelos?”, pergunta Pedro. Taísia acena afirmativamente e todos se põem de cócoras, em posição de cogumelo. Os acordes iniciais dão o mote para se levantarem com leveza. Os movimentos acompanham a letra e o “Pica do 7” passa a ser traduzido por gestos. António Zambujo canta que quando o 7 o apanha até a senha lhe salta da mão, ao mesmo tempo que todos saltam bem alto até cair no chão.

Tudo corre bem, aplaudem-se uns aos outros, a professora elogia, mas aproveita para lembrar que “amanhã já é a sério”. Tão a sério que, em vez da aparelhagem que toca o CD vezes sem fim, vão dividir o palco com o pianista Adriano Jordão e a percussionista Elizabeth Davis. “Mas nós sabemos tudo”, garante Marta, que ajeita os óculos que teimam em escorregar com tanto rodopio. Levanta-se num ápice e, depois de um olhar cúmplice ao resto do grupo, avisa: “E preparem-se que temos uma surpresa.” Taísia recosta-se no banco e espera pela novidade. “Vamos fazer tudo outra vez, mas agora sozinhos.” O ar decidido de Marta faz com que os colegas nem tenham tempo para relembrar os passos aprendidos nas últimas semanas. Depois de carregar no play, a música flui e não há falhas nos gestos que acompanham a letra.

A música acaba, todos se levantam num pulo. “Vês? Conseguimos!”, grita Marta, como se dúvidas ainda existissem. O ensaio acaba com um abraço coletivo, mais um abraço de “até amanhã” e só mais um, só porque sim. Bom saber que os abraços como os do Germano não são um exclusivo meu.