Com a cadeira do Reino Unido ainda morna e assim que Trump virou costas, Angela Merkel tratou de pôr os pontos nos ii sobre como é que isto agora vai funcionar: “O tempo em que podíamos depender completamente dos outros, de certa forma, acabou.” Continuamos todos amigos, mas “temos de ter noção de que temos de lutar pelo nosso futuro sozinhos, pelo nosso destino enquanto europeus”, ouviu-se num comício do partido bávaro CSU em Munique.
Angela Merkel diz que se apercebeu desta nova realidade “nos últimos dias”, referindo-se à cimeira do G7 na Sicília e ao rescaldo do encontro da NATO, onde as divergências com o presidente dos Estados Unidos sobre o Acordo do Clima de Paris, o combate aos protecionismos e as sanções à Rússia foram o prato do dia.
Prestes a disputar eleições na Alemanha, Merkel está a fazer o seu papel. Aproveitou a debandada dos sócios mais poderosos para assumir a liderança inequívoca do espaço europeu, o que lhe permite, de uma só vez, tratar de um coelho na campanha interna e de outro na Europa.
Internamente, a candidata a chanceler precisa de segurar o eleitorado para quem a Europa é o quintal da Alemanha ou não será, um voto cada vez mais aliciado por partidos eurocríticos ou eurocéticos. Esse eleitorado não está disposto a deixar-se humilhar por Donald Trump nem considera como assuntos menores o aquecimento global, a conduta de Vladimir Putin ou o excedente comercial da Alemanha.
Para fora, Merkel puxa o lustro ao orgulho europeísta que anda pelas ruas da amargura, tenta reacender a chama de um projeto comum, com duas garantias: Emmanuel Macron não será obstáculo e a Europa pode dormir descansada porque há uma “Mutti” que olha por nós.
Numa Europa que já se habituou a ouvir Merkel com muita atenção, o seu discurso marcou os comentários dos dias seguintes. Há quem diga que a eleição de Trump decretou a morte das alianças tradicionais e, com isso, sepultou a ordem do pós-guerra, esquecendo que a ordem do pós-guerra assentou na robustez de Estados sociais que começaram a ser atacados, muito antes da eleição de Trump, pela austeridade imposta precisamente pela chanceler alemã e pelo seu arrepiante ministro das Finanças.
Outros parecem ter sentido o afago no orgulho europeísta e viram nas declarações de Merkel um grito do Ipiranga europeu, uma oportunidade para a reconstrução democrática da Europa, um novo impulso para o federalismo. Parece ter-lhes passado ao lado a parte em que Angela Merkel assumiu para si o papel de dona disto tudo.
A Europa de Merkel não traz oportunidades, arrasta perigos. Quando o mundo está numa escalada armamentista e os conflitos se agudizam, a Europa alemã cheira a exército europeu. A Europa alemã soa a austeridade, ao mesmo Tratado Orçamental e ao mesmo Pacto de Estabilidade, onde mais integração significa apenas mais controlo sobre os nossos orçamentos.
A existência de um Trump do outro lado do oceano pode ajudar Merkel a reacender orgulhos feridos. Que o contraste é útil para a sua afirmação como chefe de uma Europa continental, não há dúvida; espantoso é haver quem caia na esparrela.
* “Mutti” – Mamã, alcunha de Merkel atribuída pelo “Der Spiegel”
Escreve à quarta-feira