Macron ou a ilusão do consenso


A minha experiência política de muitos anos ensinou-me que, sempre que aparece um político a proclamar que não é de esquerda nem de direita para tentar sacar votos em ambos os lados, é certo e sabido que se trata de um político de direita. É o caso de Macron!


Por uma daquelas transformações aparentemente inexplicáveis que a Igreja Católica atribui aos milagres, Emmanuel Macron conseguiu conquistar uma segunda virgindade política que fez esquecer, temporariamente, que já tinha sido politicamente desflorado há vários anos, quer como conselheiro de François Hollande quer como ministro da Economia de Manuel Valls. De facto, a cirurgia política está hoje suficientemente avançada para permitir a reconstrução da virgindade política de alguém que quer apresentar-se, perante a credulidade popular, como não sendo “nem de esquerda nem de direita”, como Macron.

Ora, tratando-se da França e de um político que diz situar-se no juste milieu, isto é, no “centro do centro”, não me canso de citar um grande mestre da ciência política, o constitucionalista e politólogo francês Maurice Duverger (1917-2014), que, precisamente há meio século (em 1967), num admirável livro intitulado “La Démocratie sans le peuple”, escreveu o seguinte sobre o juste milieu: “O centrismo favorece a direita. Aparentemente, as coligações do juste milieu são dominadas ora pelo centro-direita ora pelo centro-esquerda, seguindo uma oscilação de fraca amplitude (…). Tais aparências mascaram uma realidade completamente diferente. Por trás da ilusão de um movimento pendular, é o centro–direita que domina quase sempre (…). Em vez de implicar uma transformação lenta mas regular da ordem existente, a conjunção dos centros desemboca no imobilismo, ou seja, no triunfo da direita”.

Além disso, sou dos que pensam, tal como a filósofa e politóloga Chantal Mouffe, que o conflito é constitutivo da política e que conceber a política democrática em termos de “consenso” e de “reconciliação” (como promete Macron) não apenas é conceptualmente errado, mas também politicamente perigoso. Quando os combates políticos perdem o significado, não é a paz social que se impõe, mas os antagonismos violentos, irredutíveis, susceptíveis de pôr em causa os próprios fundamentos das nossas sociedades democráticas.

Foi em 1994 que o sociólogo inglês Anthony Giddens publicou um famoso livro intitulado “Para além da Esquerda e da Direita”, que era um convite ao Labour Party para ultrapassar as velhas clivagens económicas e sociais, seguir a “terceira via” e tornar-se o New Labour de Tony Blair. Ao mesmo tempo, na Alemanha, o ideólogo do chanceler Gerhard Schröder, Bodo Hombach, elaborava a teoria de um “novo centro” destinado ao SPD, a fim de conciliar o liberalismo e a social-democracia, privilegiando as “classes inovadoras abertas à mundialização”. E é aqui que radica o falso “progressismo” de Macron, sabendo-se que tais teorias estão em crise em toda a parte por não terem sabido ou desejado encontrar soluções para combater a progressão brutal das desigualdades e para responder aos desafios ecológicos.

Emmanuel Macron, novo PR francês, é um político da direita neoliberal, talvez mais comedido, que serviu como banqueiro dos Rothschild e que, como ministro da Economia durante dois anos, promoveu nova legislação do trabalho e políticas económicas que encantaram os empresários e inquietaram os trabalhadores. Significativas foram também as escolhas de alguns conselheiros da sua campanha eleitoral: o ministro Jean–Yves Le Drien, que aprovou todas as intervenções militares decididas por Hollande; o general de cinco estrelas Jean-Paul Palomeros, que ocupou até 2015 um posto de grande prestígio na NATO; o actual embaixador da França em Washington, Gérard Araud, um neoconservador que se regozijou, em 2011, com a guerra conduzida pelo PR Sarkozy na Líbia, hoje completamente devastada e dividida; e François Heisbourg, exactamente um dos peritos que, em 2003, defendiam com entusiasmo, ao invés do PR Chirac, que a França devia acompanhar EUA e Reino Unido na invasão do Iraque.

Como é de calcular, não me surpreendeu minimamente que o PR Macron tenha escolhido para seu primeiro-ministro o actual presidente da Câmara Municipal de Le Havre, Édouard Philippe, um dos muitos vira-casacas que pululam na política francesa. Chegou a ser militante do PSF mas passou-se para a direita, é membro de Les Républicains, partido de Sarkozy, Juppé e Fillon. Foi porta-voz do candidato Alain Juppé, derrotado nas primárias da direita tal como Sarkozy, e depois apoiante do candidato François Fillon. O cinismo do angelical vira-casacas Emmanuel Macron não tem limites, pertence à mesma escola de François Hollande e Manuel Valls, que se detestam triangularmente, e é óbvio que fará com que alguma coisa mude para que tudo fique como está, isto é, nas mãos da direita conservadora e neoliberal.

A minha experiência política de muitos anos ensinou-me que, sempre que aparece um político a proclamar que não é de esquerda nem de direita para tentar sacar votos em ambos os lados, é certo e sabido que se trata de um político de direita. É o caso de Macron!

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990