“Soprador de apito” é a tradução literal de Whistleblower. À partida a expressão “soprador de apito” parece não ter qualquer significado para nós, no entanto, a figura (jurídica) do Whistleblower envolve, internacionalmente, um relevante sentido em matéria de deteção e combate à fraude.
Na verdade, o Whistleblower é reconhecido pelo contributo que acrescenta no combate ao crime, referindo-se aos indivíduos que denunciam irregularidades civis ou criminais, de empresas e instituições. Estas irregularidades estendem-se a diversos atos ilícitos, nomeadamente: corrupção empresarial e pública, direitos dos consumidores, regras da concorrência, cartelização, e até poluição ambiental.
Com maior ou menor relevância, de acordo com as respetivas diferenças culturais e mesmo jurídicas, a figura do “denunciante(1)” adquiriu o seu espaço nas sociedades contemporâneas.
Não avançando para uma perspetiva jurídica, nem etimológica da palavra, façamos uma reflexão à existência desta figura, à sua importância bem como à proteção que lhe é (ou não) garantida.
É do conhecimento geral histórias de denúncias de atos ilícitos que ocorrem em instituições, sejam privadas ou públicas. O acesso aos factos na origem da denúncia poderá ocorrer em virtude da posição privilegiada do denunciante (no caso de fazer parte da instituição que incorre no ilícito). Por outro lado, o conhecimento dos factos denunciados poderá pertencer a quaisquer outros indivíduos (anónimos cidadãos) que entendam por bem relatar aos organismos competentes os factos que têm conhecimento. Cabendo, posteriormente, aos organismos referidos investigar e apurar a veracidade dos factos denunciados, acionando os mecanismos legais.
Obviamente, esta é uma personagem importante no combate ao crime como, facilmente, se pode deduzir de situações em que o vizinho denuncia a fábrica que derrama poluentes para o rio, procurando assim por fim a este crime ambiental. Ou, situações de colaboradores que denunciam casos de fraude (financeira, fiscal…) da empresa da qual fazem parte. Exemplo disto é, entre muitos outros casos, o caso de Sherron Watkins, responsável pela denúncia das irregularidades contabilísticas que detetou na “gigante” ENRON (empresa americana de distribuição de energia elétrica), alertando para uma possível “…wave of accounting scandals(2)"
Que proteção haverá para quem denuncia? Para quem de verdadeira boa-fé procura que as irregularidades de que tem conhecimento, cessem?
Sim, porque, em boa verdade, esta figura não é acolhida por todos de uma forma unânime.
Senão vejamos, o caso do vizinho da fábrica que polui o rio: Em caso de denúncia poderá haver condenação (coima e/ou encerramento). Que sentimentos terão, por este vizinho, os operários desta instituição (agora encerrada), sem postos de trabalho?
Vejamos ainda a situação do colaborador que faz uma denúncia da própria empresa. Como passa a ser visto? Como um exemplo? Um herói? É obvio que não. Quando muito será alvo de retaliações. Começando por notar que da sua participação dos factos não resultará qualquer investigação, seguindo-se uma crítica constante ao seu desempenho, um olhar descrente por parte dos colegas,…
Quer num caso quer no outro é percetível que esta não é uma posição cómoda.
No ano de 2003 a ONU celebra, em Nova Iorque, a Convenção Contra a Corrupção, cuja vigência internacional inicia em 2005 e é ratificada, em Portugal, em 2007. Do seu 33º artigo – Protecção das pessoas que dão informações – retira-se a citação:
“Cada Estado Parte deverá considerar a incorporação no seu sistema jurídico interno de medidas adequadas para assegurar a protecção contra qualquer tratamento injustificado de quem preste, às autoridades competentes, de boa fé e com base em suspeitas razoáveis, informações sobre quaisquer factos relativos às infracções estabelecidas em conformidade com a presente Convenção.”
Estará assim garantida a proteção a estes indivíduos? Haverá vontade em demonstrar verdadeira proteção para estes “informadores”? Uma vasta quantidade de literatura internacional aponta para a existência de um desfasamento entre a letra da lei e a realidade, quanto à proteção do whistleblower.
Já em território nacional e, sem pretender demonstrar excessivos fatalismos, transparece a ideia de que o conceito em debate parece estar associado a uma conotação negativa, a um sentido pejorativo. De certa forma, associa-se a esta ideia palavras como bufo ou chibo, que, efetivamente transferem uma carga negativa à palavra whistleblower, que na sua essência se afasta desta negatividade.
A título pessoal, a expressão “soprador de apito” transporta-me, metaforicamente, para a carismática figura do agente de autoridade, de apito na boca (e fazendo uso do mesmo), em perseguição a um malfeitor, identificando e alertando todos na sua passagem. Será?
Seremos nós possíveis “sopradores de apito”, seremos possíveis dedos acusatórios para quem, corajosamente, denuncia, ou seremos cúmplices da fraude que acontece diante de nós?
[1] Será utilizado o termo denunciante por ser o que mais se aproxima da ideia traduzida pela palavra inglesa de whistleblower, são feitas algumas referências a informador, delator.
[2] Expressão que consta no memorando que enviou, anonimamente, para o seu superior hierárquico e que significa “…uma onda de escândalos financeiros”, como antevisão para o que estaria para acontecer na ENRON.