António Costa é um regionalista traumatizado. Os resultados do referendo de há 20 anos ainda não lhe saíram da memória e são suficientes para o primeiro-ministro afastar a proposta do PCP e do PEV para aprovar uma nova consulta popular para a criação de regiões administrativas. Costa considera que o mais certo era voltar a ganhar o não e quer evitar esse cenário.
Para vincar que não mudou de ideias, António Costa lembrou a reforma das CCDR que consta do Programa do Governo. Só que essa é uma reforma que vai ficar na gaveta pelo menos até depois das autárquicas.
A proposta desenhada por António Costa e Eduardo Cabrita passava por democratizar estas estruturas, fazendo com que as direções das CCDR passassem a ser eleitas pelos membros das câmaras e assembleias municipais de cada região, em vez de serem nomeadas pelo governo.
As dúvidas de Marcelo
Mas a ideia levantava sérias dúvidas ao Presidente da República e contava com a oposição de PSD, BE, PCP e PEV.
Marcelo Rebelo de Sousa e os sociais-democratas consideravam que se tratava de uma “regionalização encapotada”. À esquerda, a reforma era curta para o que se considera ser a descentralização de poderes necessária, que só seria cumprida com a regionalização.
A solução política foi deixar o dossiê na gaveta até depois das autárquicas. Mas a intenção é mesmo avançar depois das eleições de 1 de outubro. “A medida está prevista no Programa do Governo e será aplicada após as próximas eleições autárquicas”, assegura ao i fonte governamental.
Para contornar os obstáculos políticos a uma proposta que é vista como essencial por António Costa, esta reforma não deve mesmo passar pelo parlamento. “É uma questão da administração pública. Será aprovada por decreto-lei”, garante a mesma fonte.
Aliás, ontem, António Costa falou da democratização das CCDR como uma medida que será mesmo concretizada, em resposta à deputada do PEV Heloísa Apolónia, que o desafiou a deixar clara a sua posição sobre a regionalização.
O passo antes das regiões
“É um passo muito importante que permitirá dar legitimidade democrática, aproximar os municípios das regiões, dar escala às políticas públicas e consolidar um modelo que, no futuro, quando houver um consenso nacional que o justifique, possa abrir um debate sobre regionalização”, disse o primeiro-ministro sobre as mudanças que quer fazer nas CCDR.
Uma coisa é certa: este não é o momento para avançar com a criação de regiões administrativas que, segundo a Constituição, só pode ser feita por um referendo. Ora, uma nova consulta popular só poderia ser convocada “por decisão do Presidente da República, mediante proposta da Assembleia da República ou do Governo”, como estabelece a Constituição da República Portuguesa.
Marcelo é favorável à regionalização, mas em 1998 fez campanha pelo não. O problema era o mapa que estava em análise, mas também a ideia de que o PS teria condições para “tomar conta do poder em todo o país”, como explica Vítor Matos na biografia de Rebelo de Sousa.
Pedro Passos Coelho, que já foi defensor da regionalização, deixou entretanto cair o tema, que desapareceu do programa eleitoral do PSD.
E estes dados são suficientes para António Costa concluir que o timing político não é favorável a avançar com uma reforma que pode gerar muitos anticorpos e provocar uma nova vitória do não em referendo.
“No momento próprio, lá chegaremos. Eu gostava de ter poderes divinatórios, mas não tenho. Há uma coisa que sei: nesta legislatura, não é com certeza”, avisou Costa, sublinhando que a questão é mesmo de oportunidade, e não de convicção.
“Não mudei de ideias”, afirmou o primeiro-ministro, recordando que no referendo à regionalização esteve do lado do sim e que continua a acreditar que a regionalização é a melhor solução, e acabará por ser inevitável.
“Neste momento não é oportuno e não há condições políticas para que se retome esse tema sem cometer os mesmos erros do passado. Ainda não desaprendi o trauma que tive com esse referendo”, vincou o primeiro–ministro.
Enquanto a reforma das CCDR fica à espera das autárquicas, a descentralização de competências também dificilmente sairá do papel antes dessas eleições.
20 audições
O grupo de trabalho da descentralização de competências para as autarquias tem agendadas cerca de 20 audições de natureza temática, algumas com centenas de participantes – um trabalho hercúleo que os deputados dificilmente conseguirão acabar a tempo de poderem concretizar a descentralização antes do início do novo ciclo autárquico.
“Não recomendo a ninguém que abra o debate [sobre a regionalização] prematuramente e precipitadamente, para não corrermos o risco de repetir os erros cometidos há 20 anos”