Ontem foi o Dia Internacional da Criança com Cancro. Bem sabemos que só deveria haver o dia da criança feliz, o dia da criança desdentada, o dia da criança com cócegas na barriga, o dia da criança com autorização para riscar as paredes, mas o dia 15 de fevereiro existe. Existe para nos lembrarmos que o mundo dá-nos cabo dos nervos. Existe para não nos esquecermos delas.
Por ser esta data, fui ao programa “Queridas Manhãs”, na SIC, acompanhada pela mãe Carla e pelo maravilhoso Francisco, de sete anos. A nossa missão era contarmos a nossa história positiva, como se fossemos a prova viva de que também se sobrevive ao cancro infantil.
Confesso que, olhando para os meus 27 anos, é estranho ser ainda a criança que teve cancro. Falar dessa criança com este corpo de adulta feita é um processo que ainda preciso de fazer. Preciso de a ouvir, de a sentir, para nunca deixar de saber falar com o coração. Vejo-a e sei que essa criança destrambelhada que não sabia bem o que se estava a passar, que não tinha muito medo porque os adultos tinham medo por ela, ainda existe. Não consigo, por exemplo, responder à pergunta “com que idade soubeste que tinhas cancro?” sem automaticamente me relembrar do meu quarto no internamento. É como se fosse inevitável transportar-me para lá. Viajo até Coimbra e faço questão de olhar para as cores das paredes, para a minha cama, para a janela que separa o quarto do resto do mundo. Faço questão de me visitar.
Esta criança de 27 anos já foi uma criança com cancro e eu não posso nem quero falar dela com distanciamento, com adultícia, com esquecimento, na terceira pessoa, como se “ela” já não fosse “eu”. Deixo que essa criança continue viva e esse exercício ajuda-me a dar sentido a estes momentos. A saber saboreá-los com a gratidão de quem está vivo. É um exercício masoquista, eu sei, mas o único que sei fazer para me manter acordada.
Olho para o Francisco, que é uma criança sobrevivente, de ar reguila e com um sorriso que derrete qualquer um, e encontro nele, ainda com mais força, este passado tão presente. O Kiko tinha apenas três anos quando foi dito aos pais que a vida seria assustadora a partir de então, mas que valeria a pena, mais do que nunca, amá-la e desejá-la. O Francisco passou por tudo o que não deveria ter passado, perdeu inclusive o andar (já recuperou e adora correr!), e os pais não perderam o andar – não porque não lhe tremessem as pernas mas porque nunca puderam parar. Tiveram de andar em frente, sempre, pelo Francisco. E ali estávamos nós os três entre risos e humor, mas também mergulhados nas nossas recordações difíceis e com a plena consciência de que representávamos, de alguma forma, a esperança que é preciso ter. Fomos umas crianças com sorte. Sabemos disso. Sabemos que tantos pais queriam estar ali, sentados no lugar da Carla, a contar também a sua história feliz.
O Dia Internacional da Criança com Cancro é o dia que gostávamos que não existisse. É um dia que, para mim, poderia ser feio. E era. Mas a vida é um conjunto de ironias. E apesar de eu já conseguir unir as peças e ver as ligações extraordinárias que dão sentido a esta minha caminhada, hoje, o universo fez questão de me mostrar outra vez que nunca poderei controlar nada. Que talvez isto já esteja tudo escrito – isto, o guião. Ou apenas está destinada a missão e o argumento somos nós que o escrevemos… Só sei que antes de entrar em estúdio, antes de visitar a minha criança interior com cancro, olho para o meu telemóvel para ver, mais uma vez, a fotografia recebida nessa manhã. Vi-o. Lindo, saudável, acabado de chegar, tão desejado e já a transbordar de amor por todo o lado. O meu segundo sobrinho nasceu ontem, no dia 15 de fevereiro de 2017, para me relembrar que a vida assusta, mas que também nos brinda com o melhor. Visitei a minha criança e disse–lhe que agora era tia. Ela riu-se muito e chorou também.
Disse-lhe para sobreviver e para, no Dia Internacional da Criança com Cancro, agradecer por estar viva mas também por ver nascer o melhor dela, nessa mesma data.
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