Se tens cancro, não apanhes o elevador


A solução do problema poderia passar pelo extermínio do mesmo, mas isso nunca irá acontecer. De qualquer forma, fica a saber que corro risco de vida por estar a trazer este assunto à baila!


Querido carequinha, preciso de conversar contigo sobre um tema muito delicado. Ninguém te falou disto antes porque a sociedade ainda não tem capacidade para ultrapassar este desafio. Na verdade, é uma questão complexa que implica uma mudança radical.

Falo-te do elevador.

A solução do problema poderia passar pelo extermínio do mesmo, mas isso nunca irá acontecer (a máfia do condomínio nunca permitirá. E eu também não, que quase desfaleço quando subo três degraus). De qualquer forma, fica a saber que corro risco de vida por estar a trazer este assunto à baila! Mas ok. Eu faço–o e espero ser condecorada por este meu ato heroico.

Carequinha: sei que vives num prédio e que não tens como não apanhar um elevador. Como já te disse, não podemos acabar com os elevadores, mas posso, pelo menos, prevenir-te.

Toma muita atenção agora. Vou dizer–te o que vai acontecer nas tuas viagens de elevador até chegares a casa. No fundo, estou a disponibilizar-te um guião que mostra a conversa que irás ter (acredita, são todas iguais). Assim, já sabes o que te espera.

Em primeiro lugar, uma pequena reflexão: se achas que a conversa sobre o tempo ou o silêncio constrangedor é o pior da viagem no elevador, estás enganado. Vais pedir a todos os santos que essas conversas aborrecidas voltem a existir. Vais passar a adorá-las porque, infelizmente, as pessoas não sabem conversar sobre trivialidades com um doente oncológico. As pessoas acham que se tem de falar do cancro – porque está ali à vista e parece mal não o referir. Eu sei, é uma estupidez.

Muito bem, vamos ao que interessa.

Entras no elevador. Mesmo antes de a porta fechar (a vida é tramada), entra outra personagem. Pior, vem sem cão. Podias gastar todo o tempo a gabar- -lhe o cão e a fazer festinhas ao Kiko, mas não há cão.

Começas por levar com um “bom dia” arrastado, meloso e muito baixinho de tom. Sorri-lhe e retribui com um “bom dia” cheio de vida e carregado. Vais ver a cara de choque do indivíduo. Mas mesmo depois disto, sabemos o que aí vem. Tem calma, eu ajudo-te.

O teu vizinho irá começar por perguntar-te:

– Como é que está a sua situação?

Eu explico. A pessoa está a referir-se ao cancro. Situação significa cancro. Por amor de Deus não puxes do extrato de conta para lhe mostrares a tua situação financeira. Não é dessa desgraça que ele está a falar. É mesmo do cancro. Eu já fiz isso e não foi bonito. Vá, respira, vamos continuar.

– E a família?

Calma com a resposta. Ninguém te perguntou COMO é que está a tua família. Não é uma conversa comum, corriqueira, lembras-te? Estás com cancro. O vizinho, quando pergunta “e a família?”, quer apenas que tu lhe digas QUAL FOI A REAÇÃO DA TUA FAMÍLIA AO TEU CANCRO. Ambos sabemos que falta meia frase mas, juro, é esse o intuito da pergunta. O foco da conversa é o cancro, não te esqueças, por isso, não lhe vais dizer que está tudo bem – ele não aguentaria tal informação. Terás mesmo de lhe contar que a família reagiu muito mal e que está toda descabelada. Espera. Não uses esse termo. Já sei que apetece agora fazer uma piada sobre o facto de a família estar descabelada, exceto tu, por motivos óbvios, mas não te estiques. Essa alminha ainda não está pronta para isso.

– Pronto, tem de ter força.

Boas notícias! A conversa está a terminar e isso é o melhor das viagens no elevador: é tudo rápido!

Como é que sei? O “pronto” sugere que a pessoa com quem conversas decidiu acabar com a conversa. Decidiu com um “pronto” que a coisa fica por ali, e se tinhas mais alguma coisa a dizer, guarda para ti. Depois de um “pronto”, nada mais há a dizer. Quanto ao “tem de ter força”, tem exatamente o mesmo significado que um “então um resto de uma boa tarde!”. É só aquilo que se diz a um carequinha, numa conversa de elevador, como cumprimento final. Não tem grande força nem um real sentido. É só uma coisa que se diz.

E para terminar o encontro-relâmpago em beleza, prepara as bochechas porque vêm aí os dois beijinhos e…voilà, a palmadita no ombro.

Era um rés-do-chão, por favor.