Há quem nunca tenha perdoado a ação do MNE na descolonização

Há quem nunca tenha perdoado a ação do MNE na descolonização


O processo de independência das antigas colónias constitui um dos períodos mais críticos da vida política de Mário Soares. Entre o milhão que regressou, muitos nunca lhe perdoaram. Falavam em ‘traição’ de Soares


Foi primeiro-ministro de três Governos (dois deles de coligação, um com o CDS e outro com o PSD), Presidente da República por dois mandatos, eurodeputado. Mas os cerca de 10 meses que passou pelo Palácio das Necessidades como ministro dos Negócios Estrangeiros, nos 1.º, 2.º e 3.º Governos provisórios a seguir ao 25 de abril de 1974 – terão sido, eventualmente, aqueles que marcaram mais negativamente a imagem de Mário Soares em mais de 40 anos de democracia.

Quando se fala de Soares, de um modo geral, os portugueses lembram o homem que se opôs com firmeza ao radicalismo da revolução, que fez frente ao PCP de Álvaro Cunhal no chamado ‘verão quente’ (1975) e à extrema esquerda, que evitou que o país saísse de uma ditadura e regressasse a um regime totalitário. É também por isso apelidado por muitos como ‘o pai da democracia’ e ‘obreiro da liberdade’. Também é commumente apontado como o maior responsável pelo processo negocial que culminou com a entrada de Portugal na União Europeia em janeiro de 1986.

Mas quando se fala de independência das antigas colónias em África – sobretudo Angola e Moçambique – Mário Soares é, ainda para muitos, sobretudo os que tiveram de regressar ao país, apontado como ‘um traidor’ que ofereceu os antigos territórios aos movimentos de libertação sem, alegadamente, ‘se preocupar com a defesa dos interesses pessoais e materiais daqueles que serviram Portugal além-mar’.

A entrevista da polémica

Ao longo destas quatro décadas que medeiam entre o 25 de abril de 1974, a independência das colónias e a atualidade foram atribuídas a Mário Soares, com alguma periodicidade, declarações polémicas. Entre as mais repetidas está uma que decorreu de uma entrevista à revista alemã Der Spiegel, em 1974, já como ministro dos Negócios Estrangeiros: «Em caso de emergência atiramos sobre os colonos brancos». Mas, na realidade, a resposta está desenquadrada e não é exatamente essa. No contexto da entrevista, a revista deixa a pergunta: «Entre os brancos que não querem regressar a Portugal, tenta-se criar um exército de mercenários para se opor aos movimentos de libertação. Em Angola, nos últimos tempos, radicais brancos de direita provocaram confrontos raciais sangrentos. Pode Lisboa impedir que tais brancos, especialmente em Angola, tomem o poder?». Ao que o então governante respondeu: «Eu penso que sim». De seguida, nova pergunta: «Portanto, se necessário, o exército português fará fogo sobre portugueses brancos?». E aí Soares foi claro: «Ele não hesitará e não pode hesitar. O exército já mostrou que tem mão forte e quer manter a ordem a todo o custo». 

Ou seja, entre o mais de um milhão de pessoas que regressou a Portugal entre  abril de 1974 a 1976 (exceção para a Guiné-Bissau, em 1974, todas as restantes independências chegaram em 1975) esta foi uma das ‘imagens’ da ‘traição’ que se colou a Soares.

A prioridade das prioridades

Aliás, a esta juntou-se também uma outra – muito utilizada por círculos próximos dos autoproclamados ‘expoliados do ultramar’ – em que se dizia que o antigo chefe de Estado tinha pisado a bandeira nacional durante uma manifestação anti-colonial realizada em Londres, em 1973. Soares sempre negou esta versão, a qual nunca foi documentalmente comprovada. E chegou mesmo a avançar para os tribunais contra quem o acusou desse ato.

Na autobiografa Mário Soares, um político assume-se, o ex-Presidente não renega o seu passado e muito menos o papel que desenvolveu naqueles 10 meses de «tempos complexos». «Pensava que sem resolver o problema colonial não haveria democracia pluralista possível nem desenvolvimento económico. Era, portanto, a minha prioridade das prioridades».

Soares conta mesmo um episódio que se seguiu à posse como MNE no 1.º Governo provisório (16 de maio de 1974)  chefiado por Adelino da Palma Carlos. A seguir à cerimónia seguiu de imediato para as Necessidades onde se encontrou com alguns diplomatas.

O primeiro passo

Aos presentes acabou por anunciar que a política externa portuguesa iria virar 180 graus e como prioridade estava a concessão do «direito à autodeterminação e à independência das colónias». 

Anunciou logo ali, perante o espanto de alguns dos presentes, que nessa noite partiria para Dacar a bordo de um avião enviado pelo Presidente do Senegal, Leopold Senghor, para se encontrar com Aristides Pereira, líder do PAIGC, e iniciar o processo de independência da Guiné. Este encontro (de meados de março de 1974) é considerado, unanimemente, como o primeiro passo para a descolonização portuguesa, como reconhece a ONU. A data reconhecida da independência do país é 10 de setembro desse mesmo ano. 

Enquanto MNE passou ainda por Lusaca, para dialogar com a Frelimo a independência de Moçambique, e por Kinshasa, para falar com MPLA, FNLA e UNITA sobre a independência de Angola. Ainda esteve no Alvor, em janeiro de 1975, onde os três movimentos assinaram um acordo adiado por 27 anos, até à morte de Jonas Savimbi em 2002.