Transparência, quem a não quer?


Viva a transparência. Cuidado com a palavra de ordem “transparência”.


Numa sociedade que se diz de informação, numa vivência que se declara democrática, numa época em que se reconhece a necessidade de reinventar a democracia e com as possibilidades de comunicação que as tecnologias permitiram, a transparência dos poderes públicos é uma prática em expansão e uma exigência crescente. Bastará ir a um dicionário para se perceber que atribuímos a este termo um sentido metafórico. Explicitemos uma primeira possibilidade: “qualidade do que transmite a verdade sem a adulterar”. A aplicação da transparência pode fazer com que a administração pública transmita a sua verdade.  

Podemos encontrar nos sistemas estatísticos nacionais a antecâmara desta transparência, mas sem o fulgor que a tecnologia hoje permite: maior quantidade de informação, conhecida no momento em que acontece o acto que a gera, difusão ampla e tendencialmente gratuita, permitindo a interacção mais abrangente entre os cidadãos, as instituições e o Estado.

Sabemos que esta transparência tem segredos, já anteriormente reconhecidos (desde os segredos da segurança do Estado ao tristemente famigerado segredo de justiça, desde a protecção de dados pessoais aos segredos de vários aspectos das empresas, para nos referirmos a alguns consignados legalmente), mas isso não invalida a suas enormes vantagens, onde é possível aplicar: informa, se não torturarem os factos para eles confessarem;comunica, se forem relevantes; facilita a prestação de serviços e aproxima os cidadãos da verdade, se for esse o caso, revelada,se permitirem diálogo.

Aceitando fideístamente que a utilização dos circuitos electrónicos aproxima as pessoas e contribuem para a profusão de um querer colectivo alicerçado na confiança, o governo electrónico assume-se como a fase última, embora em perpétua melhoria, da tão desejada transparência. Há mesmo quem admita que as tensões sociais, que vão da propriedade do capital e da riqueza às assunções culturais e ideológicas se tenderiam a diluir no convívio democrático entre os grupos sociais.

Acrescente-se ainda que esta postura, politicamente correcta, de exigir um Estado mais transparenteintegra um anseio universal de verdade que passa pela responsabilidade social das empresas, nomeadamente perante as situações ambientais, pelo balanço social das empresas, incluindo informações sociais da empresa, e a accountability, a responsabilização objectiva perante terceiros.

Embora o nosso objectivo seja tecer algumas considerações sobre a utilização metafórica do termo noutros contextos, fará sentido, para dissipar alguma ironia que pode trespassar das considerações anteriores, perguntar se não devemos lutar pela transparênciado Estado, mesmo que limitada. A resposta é inequívoca: devemos. Contudo há alguns cuidados a ter.

Devemos precisar o significado efectivo do conceito de transparência. É signo sociopolítico que se metamorfoseia com a sua sistemática utilização, a tal ponto que se pode transformar em bandeira sem signos. Trata-se de transparência de acontecimentos ou de procedimentos? Formal ou efectiva? Do passado ou em tempo real? Qual o melhor momento para a exigir e a aplicar? É um circuito de informação do Estado para a sua envolvente social ou é de interacção e transformação das entidades envolvidas incluindo o próprio Estado? Quando o politicamente incorrecto se assume como correcto houve, eventualmente, avanços conseguidos, mas riscos de menor clarividência futura. As “direcções e as variedades da transparência precisam de ser cuidadosamente estudadas” (David Heald) e a sua banalização linguística tende a contrariar essa necessária reflexão crítica.

Mesmo quando a evocação da transparência traveste-se em passerelle de vaidades, como acontece com a informação disponível em portais autárquicos desde que a Transparência e Integridade Acção Cívica (TIAC) resolveu hierarquizar os municípios pela informação que disponibiliza, merece a pena.

Contudo fica uma pergunta em aberto: a transparência reduz a corrupção? A resposta não é concludente. Alguns estudos revelam que numa dada sociedade a transparência aumenta a satisfação e confiança dos cidadãos e, simultaneamente reduz a corrupção. Outros, assumindo a percepção da corrupção como indicador desta, concluem que a transparência diminui aquela numas sociedades mas não noutras, sendo o elemento diferenciador a qualidade do que habitualmente se designa por sociedade civil.

Admitimos que o signo transparência, enquanto mero registo e informação, aplicado a determinadas realidades que são a antecâmara da corrupção, como são os grupos de pressão (corriqueiramente lobby) e os conflitos de interesse, pode funcionar como um elemento facilitador daquela.

Enfim, na situação a que temos vindo a aludir podemos considerar a transparência como positiva, embora sempre carecendo de precisão e não se transformando em chavão vazio de conteúdo, mas o mesmo não se poderá dizer quando o sentido metafórico da transparência é “carácter do que não é fraudulento”.A esta leitura simplória se associa que combater a fraude, nomeadamente a económico-financeira, faz-se aumentando a transparência.

Consideramos esta postura pouco sensata por diversas razões.

Desde logo há opacidades objectivas que impedem inexoravelmente que a transparência enquanto utopia possa ser uma realidade em potência. Recorde-se que em todos os países temos uma economia não registada, isto é, que passa à margem dos registos oficiais, que assume uma percentagem elevada da actividade económica. Aí podemos encontrar a fraude fiscal, mas também as actividades ilegais, do tráfico de seres e órgãos humanos à droga. Mais, uma parte dessas actividades são geridas por organizações criminosas transnacionais com estreita associação, em muitos casos, às elites económico-financeiras, cuja imagem de popularidade e, quiçá, bondade é a negação do essencial da sua actividade. Recorde-se que as fraudes, mesmo nas actividades registadas, são veladas e não se revelam como tal. Recorde-se que os mercados económicos, esse ente divino actual que se tende a sobrepor à vontade das populações, é um espaço em que a informação é assimétrica, repartida de acordo com o poder económico oligopolizado, a que se associa uma ideologia de normatividade vazia e ineficaz.Além disso potenciados pelo sigilo dos offshores.

Acresce que há frequentemente uma forte dependência dos Estados em relação aos mercados, especialmente aos financeiros. Por razões subjectivas porque “um indivíduo que se sente com poder, se torna menos capaz de sentir empatia com as outras pessoas” e porque “fechados em salas de reuniões, durante horas a fio com membros do sector empresarial, os nossos representantes eleitos começarão, com o passar do tempo, a sentir que pertencem àquilo a que poderemos chamar a «elite político-económica” (Manuel Arriaga). Por razões objectivas porque muitos Estados estão algemados aos mercados financeiros pelas enormes dívidas públicas.

Finalmente porque associar o combate à fraude à transparência é deslocar para o processual o que é essencialmente um problema ético num contexto de uma sociedade fortemente desigual.

 


Transparência, quem a não quer?


Viva a transparência. Cuidado com a palavra de ordem “transparência”.


Numa sociedade que se diz de informação, numa vivência que se declara democrática, numa época em que se reconhece a necessidade de reinventar a democracia e com as possibilidades de comunicação que as tecnologias permitiram, a transparência dos poderes públicos é uma prática em expansão e uma exigência crescente. Bastará ir a um dicionário para se perceber que atribuímos a este termo um sentido metafórico. Explicitemos uma primeira possibilidade: “qualidade do que transmite a verdade sem a adulterar”. A aplicação da transparência pode fazer com que a administração pública transmita a sua verdade.  

Podemos encontrar nos sistemas estatísticos nacionais a antecâmara desta transparência, mas sem o fulgor que a tecnologia hoje permite: maior quantidade de informação, conhecida no momento em que acontece o acto que a gera, difusão ampla e tendencialmente gratuita, permitindo a interacção mais abrangente entre os cidadãos, as instituições e o Estado.

Sabemos que esta transparência tem segredos, já anteriormente reconhecidos (desde os segredos da segurança do Estado ao tristemente famigerado segredo de justiça, desde a protecção de dados pessoais aos segredos de vários aspectos das empresas, para nos referirmos a alguns consignados legalmente), mas isso não invalida a suas enormes vantagens, onde é possível aplicar: informa, se não torturarem os factos para eles confessarem;comunica, se forem relevantes; facilita a prestação de serviços e aproxima os cidadãos da verdade, se for esse o caso, revelada,se permitirem diálogo.

Aceitando fideístamente que a utilização dos circuitos electrónicos aproxima as pessoas e contribuem para a profusão de um querer colectivo alicerçado na confiança, o governo electrónico assume-se como a fase última, embora em perpétua melhoria, da tão desejada transparência. Há mesmo quem admita que as tensões sociais, que vão da propriedade do capital e da riqueza às assunções culturais e ideológicas se tenderiam a diluir no convívio democrático entre os grupos sociais.

Acrescente-se ainda que esta postura, politicamente correcta, de exigir um Estado mais transparenteintegra um anseio universal de verdade que passa pela responsabilidade social das empresas, nomeadamente perante as situações ambientais, pelo balanço social das empresas, incluindo informações sociais da empresa, e a accountability, a responsabilização objectiva perante terceiros.

Embora o nosso objectivo seja tecer algumas considerações sobre a utilização metafórica do termo noutros contextos, fará sentido, para dissipar alguma ironia que pode trespassar das considerações anteriores, perguntar se não devemos lutar pela transparênciado Estado, mesmo que limitada. A resposta é inequívoca: devemos. Contudo há alguns cuidados a ter.

Devemos precisar o significado efectivo do conceito de transparência. É signo sociopolítico que se metamorfoseia com a sua sistemática utilização, a tal ponto que se pode transformar em bandeira sem signos. Trata-se de transparência de acontecimentos ou de procedimentos? Formal ou efectiva? Do passado ou em tempo real? Qual o melhor momento para a exigir e a aplicar? É um circuito de informação do Estado para a sua envolvente social ou é de interacção e transformação das entidades envolvidas incluindo o próprio Estado? Quando o politicamente incorrecto se assume como correcto houve, eventualmente, avanços conseguidos, mas riscos de menor clarividência futura. As “direcções e as variedades da transparência precisam de ser cuidadosamente estudadas” (David Heald) e a sua banalização linguística tende a contrariar essa necessária reflexão crítica.

Mesmo quando a evocação da transparência traveste-se em passerelle de vaidades, como acontece com a informação disponível em portais autárquicos desde que a Transparência e Integridade Acção Cívica (TIAC) resolveu hierarquizar os municípios pela informação que disponibiliza, merece a pena.

Contudo fica uma pergunta em aberto: a transparência reduz a corrupção? A resposta não é concludente. Alguns estudos revelam que numa dada sociedade a transparência aumenta a satisfação e confiança dos cidadãos e, simultaneamente reduz a corrupção. Outros, assumindo a percepção da corrupção como indicador desta, concluem que a transparência diminui aquela numas sociedades mas não noutras, sendo o elemento diferenciador a qualidade do que habitualmente se designa por sociedade civil.

Admitimos que o signo transparência, enquanto mero registo e informação, aplicado a determinadas realidades que são a antecâmara da corrupção, como são os grupos de pressão (corriqueiramente lobby) e os conflitos de interesse, pode funcionar como um elemento facilitador daquela.

Enfim, na situação a que temos vindo a aludir podemos considerar a transparência como positiva, embora sempre carecendo de precisão e não se transformando em chavão vazio de conteúdo, mas o mesmo não se poderá dizer quando o sentido metafórico da transparência é “carácter do que não é fraudulento”.A esta leitura simplória se associa que combater a fraude, nomeadamente a económico-financeira, faz-se aumentando a transparência.

Consideramos esta postura pouco sensata por diversas razões.

Desde logo há opacidades objectivas que impedem inexoravelmente que a transparência enquanto utopia possa ser uma realidade em potência. Recorde-se que em todos os países temos uma economia não registada, isto é, que passa à margem dos registos oficiais, que assume uma percentagem elevada da actividade económica. Aí podemos encontrar a fraude fiscal, mas também as actividades ilegais, do tráfico de seres e órgãos humanos à droga. Mais, uma parte dessas actividades são geridas por organizações criminosas transnacionais com estreita associação, em muitos casos, às elites económico-financeiras, cuja imagem de popularidade e, quiçá, bondade é a negação do essencial da sua actividade. Recorde-se que as fraudes, mesmo nas actividades registadas, são veladas e não se revelam como tal. Recorde-se que os mercados económicos, esse ente divino actual que se tende a sobrepor à vontade das populações, é um espaço em que a informação é assimétrica, repartida de acordo com o poder económico oligopolizado, a que se associa uma ideologia de normatividade vazia e ineficaz.Além disso potenciados pelo sigilo dos offshores.

Acresce que há frequentemente uma forte dependência dos Estados em relação aos mercados, especialmente aos financeiros. Por razões subjectivas porque “um indivíduo que se sente com poder, se torna menos capaz de sentir empatia com as outras pessoas” e porque “fechados em salas de reuniões, durante horas a fio com membros do sector empresarial, os nossos representantes eleitos começarão, com o passar do tempo, a sentir que pertencem àquilo a que poderemos chamar a «elite político-económica” (Manuel Arriaga). Por razões objectivas porque muitos Estados estão algemados aos mercados financeiros pelas enormes dívidas públicas.

Finalmente porque associar o combate à fraude à transparência é deslocar para o processual o que é essencialmente um problema ético num contexto de uma sociedade fortemente desigual.