Miguel Martins. “Quando os tempos vivos se tornam tempos mortos”

Miguel Martins. “Quando os tempos vivos se tornam tempos mortos”


O poeta, que tem mantido um ritmo de publicação bastante regular nos últimos anos, acaba de ver editado aquele que considera ser o seu melhor livro, “Desvão”.


"Excessos e vazios", as fúrias de um génio por interposto das leituras que fez como se as tivesse escrito, velho capitão radicado nos desvios do fumo do seu cachimbo, a ver por entre as nuvens tabágicas domadas miragens, pôres-do sol, uma tosse com pedaços de visões, prosa de restos que soa a grandes odisseias, um espantoso repertório de ecos, escamas, caudas de fantasias sacudindo-se na carpete, uns cabelos relampejando na almofada, sinais que nos fazem arpoar na própria imaginação essa extravagante ausência. A escrita de Miguel Martins é cheia de sedução, uma autência loja de iscos literários, as paredes forradas de notícias de míticos avistamentos, quadros de heróicos promontórios, os faróis comidos pela névoa, barcos de andar à pesca de lendas, e os rostos de todo o género de aventureiros, portos como saliências verbais, e tudo isso é uma paisagem que vertigina em direcção a um balcão onde depois se vende minhoca para ir pescar no pontão a sonhar com os grandes peixes. “Tentar,/ sem sucesso, pescar, e ir ao mercado comprar peixe/ miúdo e roupas com defeitos às ciganas. Ser anónimo/ por fora e por dentro, criança que não se conhece/ nem quer conhecer e que procura apenas o início e o fim/ de um carreiro de formigas, revelação suficiente/ para quem ainda não desperdiçou a vida a perscrutar/ os gloriosos fundos de um oceano de merda. Beber/ pouco. Foder com a moderação que a improbabilidade/ do diálogo impõe. Emular os pioneiros,/ pescadores em busca de recomeço e horizonte, longe/ das catedrais e de si próprios, longe dos quiromantes/ e das sibilas e, sobretudo, da inexorável morte do amor.”

É uma poesia com o enormíssimo mérito (hoje, pelo menos) de trazer as costuras viradas para dentro, mais parcimoniosa no modo de elencar as suas referências, e, contudo, tem muito aquele gosto ao ar que se respira nas margens de grandes rios, grandes obras. É tudo furiosamente autobiográfico, mas não se encontra ninguém atrás daquela voz, que é apenas o vozeio de um grande actor, trocando de pele, experimentando em cena um retrato feito de frases sonantes de vários personagens, como se a poesia fosse um infindo ensaio à porta fechada, e do qual nos vão chegando apenas uns brados. Do spleen ao resmoneio irado, as diatribes contra os outros e contra si, passando pelas improváveis e grandiosas rememorações, um homem a mentir ao espelho. Há neste, como em qualquer livro do autor – dono de uma obra circular, em que os títulos só pontualmente se diferenciam uns dos outros –, uma evidente têmpera espectaculosa, teatral, textos que sabem sempre a fragmentos de um imenso solilóquio, que nos seus melhores momentos é desconcertante, torna-se selvagem e constrói um saboroso e eloquente tom libertário, e nos piores torna-se moralista, predicativo, de um narcisismo sem saída. O discurso constante do eu – um eu que nunca é verdadeiramente um outro –, faz com que esta poesia resulte melhor em doses homeopáticas. Ainda assim, Miguel Martins tem sido dos poetas mais instigantes na expressão de uma angústia  face à estreiteza da vida sujeita às “servidões”, a um quotidiano latrinário. De algum modo, os seus poemas incidem também na crise tão própria da poesia actual, um discurso que ou se relativizou excessivamente, ou não abdicando de uma perspectiva honesta sofre, depois, vendo-se incapaz de escapar à debilidade das paisagens “quando o sol se põe/ e os meus olhos iluminavam caminhos antigos/ e era já tão mau poeta/ que não sabia ir até ao fim.” (Blaise Cendrars).

 

"Desvão", de Miguel Martins

com desenhos de João Concha

36 páginas / 8€

não (edições), 2016


 

Toda a santa noite, um relógio de cuco, o sino
de uma igreja, um carro na avenida, a insónia
a tomar o peso ao desalento, e a ternura em fuga
por um campo deserto. Toda a santa noite,
a mesma correria, abraçando-me ao ar como
se fosse um corpo, rasurando as imagens, em saldo
e já alheias, de um passado um pouco menos
precipício. Uma meia de leite, uma meia no pé,
meia lua, quase meia maratona, sem sair do quarto,
sem sair do enredo a que me acho preso como
o fogo à chama. Alça a madrugada o seu can-can
de vento sobre a tabuada livre das crianças,
e todo o meu medo se reconstrói em tempo, tempo
que percorre, nuvem de leite azedo, a vida de quantos
têm cinco dedos em cada mão pousada sobre o muro
do cerco. Depois, tudo pára (para tomar chá? ou será
que a canseira desafinou os dedos?) e, súbito, o degredo
é a única forma de esquecermos os barcos
em que, outrora, sonhámos alcançar Port Said
no embalo de um verso de desespero ao largo.

 


 

Ao sair da prisão, esperavas-me, 
com uma ostra fresquíssima sobre as palmas 
das mãos. Será sempre essa a imagem 
que guardarei de ti, quer fiquemos juntos 
para sempre, como dizem os padres, 
quer partas para a China mais longínqua, 
que é o coração de outro homem. 
Depois de cinco anos cimentado, 
rodeado pela música torturante de respirações 
sem freio e sem paz, trouxeste-me o mar 
a uma terra interior, onde até os homens livres, 
até as crianças, caminham de cabeça baixa. 
Por isso, nunca te darei prendas no Natal 
ou no teu aniversário: nada se poderia comparar 
àquela lágrima feliz e vagamente sólida 
que, nesse dia, me desceu pela garganta 
até ao sítio indeterminado em que nos distinguimos 
das feras. Posso apenas tentar confundir-me 
com o tapete do corredor, com a torneira 
da cozinha, com o creme que pões na cara, 
de manhã ou à noite, e deixar que me dês o uso 
que te parecer melhor, ou que não me dês uso algum, 
e aproveitar cada minuto dos teus gestos mais leves, 
que, também eles, se assemelham ao mar, 
quando as noites são calmas e o luar o ilumina 
na baía Cádis.