Ponte de Sor. Só o Iraque pode levantar a imunidade

Ponte de Sor. Só o Iraque pode levantar a imunidade


Os gémeos iraquianos não podem ser detidos nem interrogados. Ao i, o Ministério dos Negócios Estrangeiros nega que o governo tenha recomendado fuga aos filhos do embaixador iraquiano


“Até uma criança de oito anos a conduzir um carro tem imunidade diplomática”, diz ao i o embaixador João Rosa Lã. Em reações ao caso dos filhos do embaixador iraquiano que deixaram um rapaz português em coma, o experiente diplomata português relembra a Convenção de Viena – assinada em 1961 –, que também estende a imunidade aos familiares de diplomatas.

Especialistas académicos esclareceram ao i que nenhum portador de imunidade diplomática poderá sequer ser detido pelas autoridades portuguesas – “nem em caso de morte” –, só podendo ser objeto de atos administrativos, e não de atos penais. “A imunidade diplomática apenas pode ser levantada pelo país de origem com uma investigação do sistema de justiça do país hospedeiro”, adiantam. Caso o país de origem recuse o levantamento, a única solução corresponde à expulsão dos membros do corpo diplomático por parte do governo – neste caso, o português. 

O incidente ocorreu em Ponte de Sor, onde um dos gémeos iraquianos estudava aviação. Segundo relatos locais, os iraquianos, de 17 anos, eram presença regular no bar onde o desacato se deu. A escola de aviação declarou a expulsão imediata do filho do embaixador iraquiano. O motivo para a agressão a um rapaz de 15 anos terão sido desavenças por causa de uma rapariga da localidade. O rapaz, Rúben, sofreu violentas agressões, encontrando-se agora em coma induzido devido a traumatismos neurológicos. 

Fonte do Hospital de Santa Maria revelou também ao i que Rúben teve de ser reanimado quando foi transportado de helicóptero para Lisboa, na madrugada de quarta-feira. Os iraquianos terão passado repetidamente por cima de Rúben com um carro de matrícula diplomática. O rosto do jovem português teve de ser reconstruído em bloco operatório devido à brutalidade do sucedido. Os cidadãos de Ponte de Sor encontram-se em choque com o tipo de violência, raro naquela região. 

Os agressores foram levados a casa pela GNR após exibirem documentação que comprovava a imunidade diplomática que possuem por serem filhos do embaixador iraquiano em Portugal. 

O embaixador Rosa Lã explica ao i que “o problema é que, na maior parte dos países, a imunidade diplomática é absoluta e praticamente sem exceções”, dando, no entanto, o exemplo dos países mais desenvolvidos, “como os Estados Unidos, a Holanda e a França, em que o conceito de imunidade diplomática é hoje mais relativizado e menos conservador”. “Em Portugal, se o diplomata não pagar a renda, não pode ser acionado judicialmente, enquanto nalguns países o conceito já não é bem o mesmo”. “Em Paris, onde fui embaixador, um diplomata que não pague o ordenado à empregada doméstica já ultrapassa a imunidade diplomática. A relação entre diplomata e cidadão é mais protegida, até por não ter a ver com a atividade diplomática e não levar a abusos. Nos Estados Unidos, até pagam multas de trânsito, coisa que cá não acontece.” 

Questionado se a reação ao sucedido teria sido mais firme noutras capitais europeias, o embaixador afirma: “Possivelmente, sim, embora tenha a maior confiança nos nossos magistrados.” Rosa Lã lembra que o Ministério dos Negócios Estrangeiros está restringido à opinião do juiz local e que “ninguém pode fazer nada sem ele”. O inquérito, segundo Augusto Santos Silva, ministro dessa pasta, “está sob segredo de justiça”. 

Acerca de uma eventual saída do país por parte dos dois suspeitos, Rosa Lã recorda “que não há acusação formal”, logo não estão proibidos de abandonar o território português. O ministro Santos Silva, em entrevista ao “Público”, recusou-se a negar que os gémeos já tenham regressado ao Iraque. 

Ao i, o deputado Duarte Marques, do PSD, diz que é preciso “deixar a justiça funcionar e que o governo mostrou sinais de assim proceder”. O social-democrata afirma, todavia, que “imunidade diplomática não significa impunidade diplomática”, logo “não serve para proteger membros do corpo diplomático para cometerem crimes”. “Nestas questões é preciso ter muita serenidade”, concluiu o deputado. 

O tenente-coronel Francisco Proença Garcia, professor na Universidade Nova, explica ao i que se trata de um “crime comum” no mundo diplomático e que, “apesar da imunidade, esta pode ser levantada ou o indivíduo declarado persona non grata”. “O melhor, nestes casos, é a crítica da sociedade civil e a pressão dos órgãos de comunicação social.” Sobre esta pressão, o professor lembra que seria dirigida em especial ao embaixador e aos filhos, tendo em conta que o governo iraquiano mantém boas relações com Lisboa, “nomeadamente em questões de petróleo e contraterrorismo”. Numa análise mais cultural, Proença Garcia refere que “o comportamento social foi péssimo, mas típico das comunidades locais árabes em que passa como forma de vida e de estar”. 

Santos Silva declarou também ao “Público” que a prioridade é que “se apurem os factos, que se encontrem os responsáveis e que sejam levados à justiça!”. Ao i, o gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros negou totalmente os rumores de que o governo português terá sugerido ao corpo diplomático iraquiano que retirasse os suspeitos de Portugal antes de ser lançada uma acusação formal. 

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, assumiu-se “preocupado e chocado com estes acontecimentos”. Em comunicado oficial, o governo iraquiano informou ter aberto uma investigação sobre o caso.