A fantasia da Cidade Maravilhosa


Quando uma cerimónia olímpica que nos fala da necessidade de um mundo de paz, como qualquer miss universo, nos pode esconder as trincheiras de uma guerra sem fim a metros.


É uma fotografia que revela uma realidade, da mesma forma como antigamente os químicos emulsionavam o papel fotográfico branco no laboratório. Lentamente, as formas apareciam aos nossos olhos e mostravam uma realidade de cuja dimensão muitas vezes, apesar de termos tirado a fotografia, não nos tínhamos apercebido. Tércio Teixeira tira do cimo do Morro da Mangueira, favela pobre e pouco iluminada, uma vista do fogo-de-artifício do Estádio do Maracanã, iluminado como se de uma nave espacial alienígena se tratasse. Seis jovens, em primeiro plano, observam, debruçados num muro, o fogo-de--artifício. Eles pertencem a um outro planeta, a um outro mundo que só entrará naquele que se vê lá longe, nas páginas dos jornais, se forem mortos numa catástrofe ou sujeitos num crime. E mesmo assim, por breves segundos.

No belo espetáculo de abertura dos Jogos Olímpicos, depois da construção da cidade é erigido um muro, e só depois nasce a favela. Território de guerra onde impera uma outra justiça e uma outra lei. 

Conheci um ativista austríaco que trabalhava com crianças de rua como as que foram assassinadas a tiro, por polícias a mando dos comerciantes, no célebre Massacre da Candelária [em que oito jovens, seis deles menores de idade que viviam na rua, foram mortos por polícias militares no adro da igreja com o mesmo nome, a 23 de julho de 1993]. Ele contava-me que, um dia, o chefe da polícia de uma das grandes cidades brasileiras tinha ido visitar a Áustria e perguntado a líder da polícia local: “Quantas pessoas é que vocês matam por ano?” O que tinha escandalizado o europeu, que lhe tinha respondido secamente que a polícia não deve matar pessoas, mas salvá-las. 

No Brasil morrem, oficialmente – os números são de 2012 -, 56 mil pessoas por homicídio, cerca de 16% delas fruto de disparos oficiais da polícia. Segundo o relatório da Amnistia Internacional, os polícias atiram em pessoas que já se renderam, que já estão feridas, e sem uma advertência que permita que o suspeito se entregue. E esta estatística esconde números negros que não são revelados. Por exemplo, a chacina da Candelária foi uma execução extrajudicial e não oficial da polícia. Se não tivessem sido identificados os seus autores, passaria por um homicídio comum de criminosos não fardados. Segundo o relatório da conhecida ONG, citado pelo jornal “O Globo”, um estudo que se concentrou na Zona Norte do Rio de Janeiro, que inclui a Favela de Acari, concluiu que entre as vítimas da violência policial no Rio, entre 2010 e 2013, 99,5% eram homens. Quase 80% das vítimas eram negras e três em cada quatro, 75%, tinham idades entre 15 e 29 anos. Segundo a Amnistia Internacional, das 220 investigações abertas contra polícias, apenas um caso tinha dado uma acusação na justiça quatro anos depois.

Segundo uma excelente reportagem do jornalista Pedro Jorge da Cunha, do site Mais Futebol, com o título “Na Favela da Maré: ‘Os Jogos do Rio já roubaram muitas vidas’”, este tipo de ações era claro como água. “A Unidade da Polícia Pacificadora – oh, a ironia! – invade a Maré e lança uma rajada de tiros. Janelas estilhaçadas, pneus furados, gente, muita gente em pânico. Thaís corre assustada, deixa cair a lancheira no piso nauseabundo, perde a comida e a alegria”, lê-se no texto. “22 de fevereiro de 2016, o dia da morte de Igor Silva, 19 anos, farmacêutico. A polícia confunde-o com um traficante de droga, atinge-o fatalmente no peito. O pão nosso de cada dia numa zona mártir da Cidade Maravilhosa.”

Sejamos justos, era o chefe de polícia brasileiro que tinha razão no diálogo com o seu homólogo austríaco: a função da polícia em países em que os ricos vivem no céu, e os pobres no inferno, é literalmente impedir que os pobres passem. Eles são aquilo a que o filósofo italiano Giorgio Agamben, nos seus livros “O Poder Soberano e a Vida Nua” e o “Estado de Exceção”, retomando uma categoria do direito da Roma Antiga, chamava Homo sacer: um conjunto de pessoas sem nenhum direito e que podem ser agredidas, torturadas e mortas sem nenhuma penalização pela justiça.

Não é por acaso que o funk da favela escutado na cerimónia olímpica reza o seguinte: “Eu só quero é ser feliz/ Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é/ E poder me orgulhar/ E ter a consciência que o pobre tem seu lugar”. A ideia que já foi incorporada, à força da bala, é que o lugar dos pobres é na favela e que são normais sociedades em que os ricos ficam com 99% da riqueza e o resto da população com 1%.

No sábado passado, a atleta Yusra Mardini, de origem síria e na delegação dos refugiados, ganhou a sua eliminatória de natação. Pode não ganhar nenhuma medalha, mas as suas braçadas já salvaram 20 pessoas. De acordo com o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), Yusra e a sua irmã Sarah foram responsáveis por salvar 20 passageiros desesperados quando o barco que fazia a perigosa travessia entre a Turquia e a Grécia encalhou. Elas nadaram e puxaram a embarcação durante três horas e meia, até atravessarem o Mediterrâneo.

“Algumas pessoas não sabiam nadar”, disse Yusra, que representou a Síria no Campeonato Mundial de Natação da FINA em 2012. “Teria sido vergonhoso se as pessoas no nosso barco se tivessem afogado. Eu não iria ficar sentada e reclamar que me poderia afogar.” Filha de um treinador de natação, ela começou a nadar aos três anos, conta ao “New York Times”.

Há uma guerra civil entre aqueles que tudo têm e os pobres deste mundo. Para 99% da população, ou fazem pela vida, nem que seja a nadar, ou vão acabar mal.


A fantasia da Cidade Maravilhosa


Quando uma cerimónia olímpica que nos fala da necessidade de um mundo de paz, como qualquer miss universo, nos pode esconder as trincheiras de uma guerra sem fim a metros.


É uma fotografia que revela uma realidade, da mesma forma como antigamente os químicos emulsionavam o papel fotográfico branco no laboratório. Lentamente, as formas apareciam aos nossos olhos e mostravam uma realidade de cuja dimensão muitas vezes, apesar de termos tirado a fotografia, não nos tínhamos apercebido. Tércio Teixeira tira do cimo do Morro da Mangueira, favela pobre e pouco iluminada, uma vista do fogo-de-artifício do Estádio do Maracanã, iluminado como se de uma nave espacial alienígena se tratasse. Seis jovens, em primeiro plano, observam, debruçados num muro, o fogo-de--artifício. Eles pertencem a um outro planeta, a um outro mundo que só entrará naquele que se vê lá longe, nas páginas dos jornais, se forem mortos numa catástrofe ou sujeitos num crime. E mesmo assim, por breves segundos.

No belo espetáculo de abertura dos Jogos Olímpicos, depois da construção da cidade é erigido um muro, e só depois nasce a favela. Território de guerra onde impera uma outra justiça e uma outra lei. 

Conheci um ativista austríaco que trabalhava com crianças de rua como as que foram assassinadas a tiro, por polícias a mando dos comerciantes, no célebre Massacre da Candelária [em que oito jovens, seis deles menores de idade que viviam na rua, foram mortos por polícias militares no adro da igreja com o mesmo nome, a 23 de julho de 1993]. Ele contava-me que, um dia, o chefe da polícia de uma das grandes cidades brasileiras tinha ido visitar a Áustria e perguntado a líder da polícia local: “Quantas pessoas é que vocês matam por ano?” O que tinha escandalizado o europeu, que lhe tinha respondido secamente que a polícia não deve matar pessoas, mas salvá-las. 

No Brasil morrem, oficialmente – os números são de 2012 -, 56 mil pessoas por homicídio, cerca de 16% delas fruto de disparos oficiais da polícia. Segundo o relatório da Amnistia Internacional, os polícias atiram em pessoas que já se renderam, que já estão feridas, e sem uma advertência que permita que o suspeito se entregue. E esta estatística esconde números negros que não são revelados. Por exemplo, a chacina da Candelária foi uma execução extrajudicial e não oficial da polícia. Se não tivessem sido identificados os seus autores, passaria por um homicídio comum de criminosos não fardados. Segundo o relatório da conhecida ONG, citado pelo jornal “O Globo”, um estudo que se concentrou na Zona Norte do Rio de Janeiro, que inclui a Favela de Acari, concluiu que entre as vítimas da violência policial no Rio, entre 2010 e 2013, 99,5% eram homens. Quase 80% das vítimas eram negras e três em cada quatro, 75%, tinham idades entre 15 e 29 anos. Segundo a Amnistia Internacional, das 220 investigações abertas contra polícias, apenas um caso tinha dado uma acusação na justiça quatro anos depois.

Segundo uma excelente reportagem do jornalista Pedro Jorge da Cunha, do site Mais Futebol, com o título “Na Favela da Maré: ‘Os Jogos do Rio já roubaram muitas vidas’”, este tipo de ações era claro como água. “A Unidade da Polícia Pacificadora – oh, a ironia! – invade a Maré e lança uma rajada de tiros. Janelas estilhaçadas, pneus furados, gente, muita gente em pânico. Thaís corre assustada, deixa cair a lancheira no piso nauseabundo, perde a comida e a alegria”, lê-se no texto. “22 de fevereiro de 2016, o dia da morte de Igor Silva, 19 anos, farmacêutico. A polícia confunde-o com um traficante de droga, atinge-o fatalmente no peito. O pão nosso de cada dia numa zona mártir da Cidade Maravilhosa.”

Sejamos justos, era o chefe de polícia brasileiro que tinha razão no diálogo com o seu homólogo austríaco: a função da polícia em países em que os ricos vivem no céu, e os pobres no inferno, é literalmente impedir que os pobres passem. Eles são aquilo a que o filósofo italiano Giorgio Agamben, nos seus livros “O Poder Soberano e a Vida Nua” e o “Estado de Exceção”, retomando uma categoria do direito da Roma Antiga, chamava Homo sacer: um conjunto de pessoas sem nenhum direito e que podem ser agredidas, torturadas e mortas sem nenhuma penalização pela justiça.

Não é por acaso que o funk da favela escutado na cerimónia olímpica reza o seguinte: “Eu só quero é ser feliz/ Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é/ E poder me orgulhar/ E ter a consciência que o pobre tem seu lugar”. A ideia que já foi incorporada, à força da bala, é que o lugar dos pobres é na favela e que são normais sociedades em que os ricos ficam com 99% da riqueza e o resto da população com 1%.

No sábado passado, a atleta Yusra Mardini, de origem síria e na delegação dos refugiados, ganhou a sua eliminatória de natação. Pode não ganhar nenhuma medalha, mas as suas braçadas já salvaram 20 pessoas. De acordo com o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), Yusra e a sua irmã Sarah foram responsáveis por salvar 20 passageiros desesperados quando o barco que fazia a perigosa travessia entre a Turquia e a Grécia encalhou. Elas nadaram e puxaram a embarcação durante três horas e meia, até atravessarem o Mediterrâneo.

“Algumas pessoas não sabiam nadar”, disse Yusra, que representou a Síria no Campeonato Mundial de Natação da FINA em 2012. “Teria sido vergonhoso se as pessoas no nosso barco se tivessem afogado. Eu não iria ficar sentada e reclamar que me poderia afogar.” Filha de um treinador de natação, ela começou a nadar aos três anos, conta ao “New York Times”.

Há uma guerra civil entre aqueles que tudo têm e os pobres deste mundo. Para 99% da população, ou fazem pela vida, nem que seja a nadar, ou vão acabar mal.