Os londrinos não estão calmos, não…


Para nós, europeus que seguimos a montanha-russa dos desenvolvimentos políticos, o dia-a-dia sofreu uma impercetível transformação. A nossa sensibilidade anda vulnerável a gestos que possam denotar rejeição da presença estrangeira neste país.


Os londrinos estão perturbados e, o que é inédito, não o disfarçam. Ninguém consegue trabalhar. Há seis dias que estamos colados às notícias, com a cabeça ora em vórtice, ora no vácuo. Uma inglesa desabafa comigo. Está em choque por não reconhecer o país; pela chuva de recriminações a desabar-lhe a família, virando os mais novos contra os mais velhos. Ela própria se agarra ao sonho de reverter legalmente o colossal mistake. Como? Invocando que a população não foi devidamente informada das consequências do Brexit. Mas foi. Vários economistas previram um cenário de recessão económica que o Treasury Committee do Parlamento confirma, agora, ser mais que plausível. Previram que a City de Londres sofreria com a partida de bancos para a Zona Euro. Previram uma subida do custo de vida. O fecho de multinacionais europeias. O fecho da torneira comunitária de apoio à agricultura e infraestruturas nas regiões mais carenciadas. Previram que, numa balança comercial deficitária, a desvalorização da libra implicaria sobretudo a subida do custo das importações, e não tanto o embaratecimento das exportações. O que aconteceu foi que a população que votou “leave” preferiu engolir o desconhecimento e as mentiras que os brexiteers lhes venderam. Nomeadamente, que arrebatariam nas negociações com a UE um acordo comercial à la carte de acesso ao mercado comunitário, com restituição de controlo de fronteiras e da imigração europeia. E que o serviço nacional de saúde seria inundado semanalmente por 350 milhões de libras!

Entretanto, o facto de Boris Johnson, o único e verdadeiro ganhador do Brexit, ter sido apunhalado por Michael Gove trouxe um certo alívio a quem não queria um “usurpador” como PM. Na corrida ficaram dois candidatos que não excitam de igual modo os ânimos populares e não aplacam as incertezas do rumo escolhido: Theresa May, que militou pelo “remain”, e Michael Gove, que sempre disse que não queria ser PM.

Para nós, europeus que seguimos a montanha-russa dos desenvolvimentos políticos, o dia-a-dia sofreu uma impercetível transformação. A nossa sensibilidade anda vulnerável a gestos que possam denotar rejeição da presença estrangeira neste país. E anda exacerbada. Entre vários exemplos, por vídeos como o que mostra um homem de raça mista a ser ofendido num autocarro em Manchester ou com notícias de carros de manufatura alemã a serem riscados com a suástica.

Porém, a contrabalançar o mal-estar, recebi inesperados e subtis gestos de acolhimento. A senhora do meu talho acenou-me atrás da janela quando passei – coisa que nunca fizera em dez anos. Amigos ingleses apareceram para uma visita. E um SMS alumiou outros cantos à realidade: “Just hoping you are not feeling rejected after the crazy vote. We are very glad to have you here.”

Escritora, vive em Londres desde 2005

Clara Macedo Cabral

Os londrinos não estão calmos, não…


Para nós, europeus que seguimos a montanha-russa dos desenvolvimentos políticos, o dia-a-dia sofreu uma impercetível transformação. A nossa sensibilidade anda vulnerável a gestos que possam denotar rejeição da presença estrangeira neste país.


Os londrinos estão perturbados e, o que é inédito, não o disfarçam. Ninguém consegue trabalhar. Há seis dias que estamos colados às notícias, com a cabeça ora em vórtice, ora no vácuo. Uma inglesa desabafa comigo. Está em choque por não reconhecer o país; pela chuva de recriminações a desabar-lhe a família, virando os mais novos contra os mais velhos. Ela própria se agarra ao sonho de reverter legalmente o colossal mistake. Como? Invocando que a população não foi devidamente informada das consequências do Brexit. Mas foi. Vários economistas previram um cenário de recessão económica que o Treasury Committee do Parlamento confirma, agora, ser mais que plausível. Previram que a City de Londres sofreria com a partida de bancos para a Zona Euro. Previram uma subida do custo de vida. O fecho de multinacionais europeias. O fecho da torneira comunitária de apoio à agricultura e infraestruturas nas regiões mais carenciadas. Previram que, numa balança comercial deficitária, a desvalorização da libra implicaria sobretudo a subida do custo das importações, e não tanto o embaratecimento das exportações. O que aconteceu foi que a população que votou “leave” preferiu engolir o desconhecimento e as mentiras que os brexiteers lhes venderam. Nomeadamente, que arrebatariam nas negociações com a UE um acordo comercial à la carte de acesso ao mercado comunitário, com restituição de controlo de fronteiras e da imigração europeia. E que o serviço nacional de saúde seria inundado semanalmente por 350 milhões de libras!

Entretanto, o facto de Boris Johnson, o único e verdadeiro ganhador do Brexit, ter sido apunhalado por Michael Gove trouxe um certo alívio a quem não queria um “usurpador” como PM. Na corrida ficaram dois candidatos que não excitam de igual modo os ânimos populares e não aplacam as incertezas do rumo escolhido: Theresa May, que militou pelo “remain”, e Michael Gove, que sempre disse que não queria ser PM.

Para nós, europeus que seguimos a montanha-russa dos desenvolvimentos políticos, o dia-a-dia sofreu uma impercetível transformação. A nossa sensibilidade anda vulnerável a gestos que possam denotar rejeição da presença estrangeira neste país. E anda exacerbada. Entre vários exemplos, por vídeos como o que mostra um homem de raça mista a ser ofendido num autocarro em Manchester ou com notícias de carros de manufatura alemã a serem riscados com a suástica.

Porém, a contrabalançar o mal-estar, recebi inesperados e subtis gestos de acolhimento. A senhora do meu talho acenou-me atrás da janela quando passei – coisa que nunca fizera em dez anos. Amigos ingleses apareceram para uma visita. E um SMS alumiou outros cantos à realidade: “Just hoping you are not feeling rejected after the crazy vote. We are very glad to have you here.”

Escritora, vive em Londres desde 2005

Clara Macedo Cabral