Mariana Mortágua nasceu há precisamente 30 anos, a 24 de junho de 1986, na vila alentejana de Alvito. E foi em vésperas do aniversário que concedeu a entrevista ao i. A conversa no Parlamento tinha como “leitmotiv” a convenção do Bloco deste fim-de-semana, mas tornou-se inescapável abordar a débil saúde do sistema financeiro.
Cinco mil milhões não é uma fatura excessiva na Caixa Geral de Depósitos (CGD)?
Não acho excessivo o maior banco português ter uma grande recapitalização. Houve uma crise, o banco tinha activos que desvalorizaram, houve requisitos de capital que aumentaram muito e um banco que tem quase 25% dos ativos do sistema bancário deve ter uma recapitalização em proporção dos activos que tem. O BCP, que tem 19% ou 20%, teve 4500 milhões de euros de recapitalização. E não estou a ver ninguém a fazer um pé de vento por causa do BCP. O que ganhamos em não pôr lá o dinheiro necessário na CGD? Vamos continuar a arrastar perdas no tempo, procurando fragilizar a situação da Caixa para, no futuro, podermos ter um banco mais fraco e que poderá a ter outra vez problemas de capital? Mais vale recapitalizar o banco e investir no que é nosso, fazendo obviamente um escrutínio do que se passou, do que questionar a recapitalização por si só. Essa questão só nos leva ao que o PSD quer que nos leve: a entrada de capital privado na CGD.
Entende que é isso que está subjacente à proposta da comissão de inquérito?
O PSD e o CDS querem mostrar que a CGD é tão mal gerida como qualquer banco privado, e sendo indiferente se a propriedade é pública ou privada, mais vale deixar entrar dinheiro privado na CGD. O CDS, ao mesmo tempo que diz que tanto faz ter propriedade pública ou privada, diz que não quer privatizar a Caixa porque é central no sistema financeiro português. Se é central, é porque não é tudo a mesma coisa. Vamos tentar obrigar as pessoas que querem este debate a fazê-lo com sinceridade, honestidade e coragem.
É por isso que defendem a auditoria em vez da comissão de inquérito?
Não temos nada contra comissões de inquérito, é bom que se perceba isto. Sou a última pessoa que quer defender o Armando Vara e os seus negócios. Ou Proença de Carvalho ou António Vitorino ou seja quem for que passou pela CGD. Aliás, sempre denunciámos esses negócios, porque em larga medida essas administrações da Caixa impediram o banco de fazer o seu trabalho, que é servir o interesse público. Queremos investigar tudo isso. Mas temos de perceber, em cada momento e face às circunstâncias de cada banco, qual o instrumento que melhor se adequa. Está a meio de um processo de recapitalização. Não acho que neste contexto uma comissão de inquérito seja o método mais prudente ou eficaz de investigar a Caixa. Corremos o risco de ter uma comissão de inquérito que não só não é eficaz como serve para o PSD e o PS lavarem roupa suja na praça pública. Com consequências para a Caixa.
O PCP teme que a vossa proposta acabe por ter os mesmos riscos…
Entendo e também tenho medo da fragilização da CGD, mas a CGD não pode estar acima do escrutínio. Estamos a tentar investigar de forma a causar o menor dano e o menor risco possível. Se houve operações que merecem ser investigadas, têm de ser. Não há razões para temer uma auditoria forense. Não é feita na praça pública.
Falou na propriedade do banco. A operação, para ser aprovada por Bruxelas, terá de ser feita nas mesmas condições do que no setor privado. Qual é a valia de um banco público se vai funcionar como um banco privado?
É a propriedade ser pública e podermos ter alguma capacidade de determinar a política de crédito desse banco. E é o facto de sabermos que enquanto a Caixa for pública, 25% do sistema bancário está em mãos portuguesas. Mas percebo o sentido implícito da pergunta. A Comissão Europeia é movida por uma visão ideológica. Não quer um sistema financeiro público ou que obedeça a critérios públicos.
Não teme que esta reestruturação descaracterize a Caixa?
Isso seria assumir que a Caixa funcionou até agora como um verdadeiro banco público. Não acho que a CGD tenha cumprido o seu verdadeiro desígnio. A Caixa é muito importante, confere estabilidade ao sistema, e foi o banco que durante a crise mais conseguiu manter o fluxo de crédito à economia quando todos os outros começaram a retirar-se. Mas não acho que nas práticas que tem, na política de concessão de crédito às empresas, nos processos de transparência e escrutínio, tenha cumprido o seu papel de banco público.
Há vários exemplos. Os empréstimos a Joe Berardo…
E os empréstimos a Vale do Lobo. A Caixa foi instrumentalizada para negócios que não eram benéficos para o interesse público.
Fala-se em alguns milhares de dispensas de pessoal. Estão confortáveis?
Temos estado contra processos de despedimentos ou de rescisão que têm sido feitos contra as regras do Código do Trabalho e do respeito pela dignidade dos trabalhadores. Naquilo que estiver ao nosso alcance, não permitiremos que um processo semelhante se passe na CGD. Não é admissível.
E quanto ao redimensionamento da presença internacional da CGD?
Se me disserem que é preciso fechar a filial ou a sucursal nas Ilhas Caimão, aí totalmente de acordo. É preciso fechar um filial em Macau numa offshore? Por favor, já devia ter sido ontem.
A comissão Banif está na reta final. Que conclusões já se podem tirar?
Parte da conclusão é que houve um arrastar de um problema que devia ter sido resolvido, e que não foi por uma questão de imagem política, por questões de défice, porque havia eleições. Depois, há também uma total incapacidade de as instituições envolvidas. A Comissão Europeia é autoritária e pede coisas completamente estapafúrdias a um banco que não pode cumpri-las porque senão vai à falência. O Ministério das Finanças finge que não determina nada, que é uma ponte entre o banco e a Comissão Europeia, e tenta agarrar o Banco de Portugal e chamá-lo a ter mais papel. O Banco de Portugal lava as mãos e diz que não é da sua responsabilidade. As instituições foram incapazes de lidar com o problema, depois chegou o momento em que o problema explodiu. E foi preciso tomar uma decisão em muito pouco tempo, que foi uma decisão caríssima.
Que consequências pode ter o relatório final?
Por um lado, seria importante mostrar como o arrastar desta situação foi prejudicial ao banco. Em segundo lugar, seria necessário mostrar que o BdP, neste caso como em quase todos, age tardiamente, sem o músculo que seria necessário. E também deve ser repensada a legislação. Há uma enorme confusão sobre o que é o papel do BdP no sistema financeiro. É supervisor, é entidade de resolução, é vendedor de bancos, faz tudo? E é mais uma vez uma entidade que não aceita ser escrutinada. O governador não aceita revelar o relatório de auditoria interna sobre como conduziu a resolução do caso BES. É inaceitável numa democracia. Não há nenhuma instituição que se escrutine a si própria.
Esta responde perante o BCE, mas não perante Portugal.
Isso danifica a nossa democracia e a capacidade soberana de tomar algumas decisões. Mas não depende tudo de regras. Há muitas decisões em que o governador poderia ter uma atitude muito mais proactiva e de interligação com o governo e o parlamento, em vez desta aparente colaboração, do género vou lá muitas vezes mas não digo nada.
Voltando à comissão do Banif, como avalia o papel das autoridades europeias?
Seria importante chegarmos à conclusão que a intervenção no Banif foi a pior solução de todas, e só foi feita porque foi imposta pelas autoridades europeias. Assumirmos que fomos obrigados a tomar uma decisão que lesava o interesse do país, apenas por imposição europeia, é um passo importante na nossa relação com as autoridades europeias e na forma como o país vê a Europa.
A moção que subscreve na Convenção deste fim-de-semana refere claramente que o Bloco tem de estar mandatado e preparado para a restauração de todas as opções soberanas essenciais ao respeito pela democracia. O que significa isto? Sair do euro? Sair da UE?
É dizer que há um limite de ataque à democracia e à soberania que não pode ser ultrapassado. É dizer que, se alguma vez formos colocados numa situação em que a UE nos diz que o nosso programa económico e social não pode ser implementado apenas porque eles não deixam, temos de ter uma cláusula de salvaguarda e de saída que nos permita, de forma soberana e democrática, implementar um projecto que é sufragado e votado no país.
O grande trauma para a esquerda é o que se está a passar com o Syriza na Grécia. Como é que o Bloco olha para isso?
O que aconteceu na Grécia foi duro para quem apoiava o Syriza e para quem discordou da decisão do Syriza. O Bloco discordou e a partir daí deixou de haver a ligação que havia antes, obviamente porque não concordámos com o rumo que as coisas tomaram. Distanciámo-nos dessa decisão. Mas o que se passou na Grécia foi duro para todas as pessoas que tinham a mínima ideia de que viviam num espaço institucional com os mínimos de democracia. O que aconteceu na Grécia diz-nos que há instituições europeias que estão dispostas a ultrapassar qualquer regra para manter o seu plano ideológico. E isto é assustador.
E também não se sabe o que é hoje o Syriza. A Mariana sabe?
Não. Acho que o próprio Syriza não sabe muito bem o que é. A imposição de austeridade na Grécia desestruturou não só o país e a base social, mas o próprio sistema político. Neste momento ou temos Syriza ou extrema-direita. O Syriza é uma coisa em ebulição e mais uma vez são as consequências da imposição de quem se está marimbando para o que vai acontecer à Grécia no futuro, desde que eles cortem as pensões. Isto é escandaloso, é revoltante. Mas a pressão das instituições europeias torna muito difícil para os diversos governos e partidos terem uma atitude puramente confrontacional. Não vale a pena dizer que isto não é verdade.
Foi o que fez Varoufakis e falhou.
Foi o que fez Varoufakis e foi o que fez o Tsipras numa primeira instância. É duro. É um confronto muito duro. No caso dos partidos socialistas europeus, é matar o pai. É perceber que a social democracia se rendeu a uma ideia da Europa de flexisegurança, da terceira via de compatibilização entre o sistema financeiro e o Estado social, o ideal da Europa, que em nome dessa ideia precarizou, liberalizou e abriu a porta ao neoliberalismo. E de tal forma liberalizou que no dia em que chegou a crise não tinha os instrumentos para a combater. Institucionalizou o neoliberalismo. Hoje não temos mecanismos para combater fenómenos especulativos dos mercados financeiros sobre a dívida pública, não temos mecanismos para controlar capitais, não temos mecanismos para determinar o que o BCE faz. Esta é a dificuldade identitária destes partidos verdadeiramente social-democratas europeus, onde se inclui o PS português.
Este orçamento continua a ser um orçamento de austeridade…
Enquanto houver a obsessão do défice não teremos os recursos necessários para a política de crescimento económico que seria absolutamente necessária ao país. Não escondemos essa divergência de fundo. Aceitámos a condição do PS, que foi o partido mais votado, do cumprimento das metas, mas dentro dessas metas há um conjunto de coisas que nós não permitimos que aconteçam. E outras que exigimos que aconteçam!
Vamos às que não permitem… Vai haver um orçamento de Estado para negociar em breve. O OE 2017 vai ser de difícil negociação com o PS?
Nós não temos nenhum fetiche pelo poder, até fomos acusados do contrário. Têm de haver boas razões que nos mantenham a apoiar um governo do Partido Socialista. Não faz nenhum sentido o Bloco manter-se num acordo e apoiar um orçamento se o nível de exigência não for o máximo. Essa ideia é importante ficar clara. Não há favas contadas. Há exigência permanente, negociação permanente, há pressão permanente.
Quais são as vossas linhas vermelhas? Não aceitam mais impostos sobre o trabalho e bens essenciais.
A partir do momento em que aceitássemos isso, estávamos aqui a fazer o quê? A ideia é fazer diferente. Não estamos aqui só porque queremos ter muitas reuniões e sentir que fazemos parte da maioria parlamentar.
Catarina Martins uma vez dirigiu-se a Costa e lembrou-lhe que já tinha perdido uma vez a maioria parlamentar [caso Banif] e que poderia perder segunda… O BE tem o governo sempre em lume brando, certo?
Não sei o que quer dizer ter o governo em lume brando.
Catarina Martins foi muito explícita quando avisou o governo de que já tinha perdido uma vez a maioria…
Temos que perceber que nem a geringonça está em permanente risco de se dissolver nem há uma relação em que alguém esteja no bolso de outro. Há uma permanente negociação, uma permanente vontade de cada uma das partes de conseguir o máximo que é possível, há linhas vermelhas.
Mas admite que o orçamento de 2017 vai ser particularmente exigente? Há sinais de desaceleração, de imposições adicionais de Bruxelas…
A situação financeira não é das melhores na Europa e em Portugal. O sistema financeiro está muito instável e a suposta recuperação que nos contaram tem pés de barro. Há um desemprego muito volátil. É neste limbo que nós trabalhamos e não é de hoje. Basta haver um problema em mercados como Angola ou como o Brasil e as exportações caem. Não estou a criar desculpa para nada. O que estou a dizer é que a estagnação e a instabilidade que se vive em Portugal e na Europa coloca-nos desafios importantíssimos. O meu problema, enquanto economista, e também como militante do Bloco, é como é que perante um cenário de estagnação e fragilidade económica achamos que o mais importante a fazer é consolidar o défice! E não é consolidar o défice dos 7 para os 3! É entre os 2.7 e os 2.3! Já estamos abaixo dos 3! Que obsessão é esta? Acha-se que o uso mais responsável a dar a 400 milhões de euros é reduzir o défice quando temos milhares de desempregados!
Se não conseguir diminuir a taxa de desemprego num prazo razoável para que é que serviu então a geringonça?
Obviamente que o nosso objectivo é criar emprego. Falar em criar emprego é fácil, criar emprego não é assim tão fácil. Mas para além da criação de emprego é preciso que os empregos sejam estáveis, as leis respeitem os trabalhadores, que haja um combate sério à precariedade e aos baixos salários. E isso pode não se traduzir hoje em criação de empregos, no futuro irá traduzir-se na criação de um emprego mais digno. A precariedade causa desemprego no médio e longo prazo.
O que é que mudou no BE desde a última convenção? Foi entretanto criada a geringonça, a Catarina deixa de ser porta-voz de uma direcção colectiva e passa a coordenadora… O Bloco está hoje mais unido do que há dois anos?
Isso é indiscutível. Não há divergências políticas de fundo dentro do partido. Na última convenção havia divergências de linha política e houve que adaptar a estrutura do partido para que de forma representativa ter órgãos que reflectissem o partido que existia. O facto da Catarina ser coordenadora representa o partido que agora existe. É a realidade.
O Bloco foi um sucesso eleitoral depois de ter passado muita turbulência. Antes das eleições, Fernando Rosas disse ao i que acreditava nas “meninas” para manterem o resultado de 5%. Mas as “meninas” dobraram o resultado. O que aconteceu?
Muita coisa. Aconteceu uma remodelação geracional que funcionou. Demorou a fazer e foi duríssima, mas ainda bem que a fizemos. O facto de termos conseguido trazer mulheres e gente mais nova também deu um impulso positivo num país que estava sem esperança, farto de ver os mesmos rostos do político de fato e gravata e cabelo branco… O estereótipo que os nossos próprios fundadores também personificavam! A existência de uma linha política clara ajudou. O não ter havido falhas e as pessoas terem percebido a mensagem. Ajudou ter havido desafios claros ao PS. Obviamente, acho que a prestação da Catarina Martins, que é a cara mais conhecida…
Há dúvidas sobre se a cara mais conhecida é a Catarina ou a Mariana. O primeiro momento de inflexão no Bloco muita gente atribui à prestação da Mariana na Comissão parlamentar do BES…
Não nos podemos esquecer que o que faz um partido é o seu projecto colectivo. No limite, podíamos ter uma Mariana a fazer um bom papel na comissão de inquérito, mas se o partido não tivesse órgãos dirigentes capazes, uma porta-voz mais do que capaz de capitalizar o renovado interesse e uma linha política que respondesse às pessoas isso esfumar-se-ia em duas semanas.
Sente algum sexismo relativamente ao facto das principais protagonistas do Bloco, juntando Marisa Matias, serem mulheres? Tivémos a cena das “esganiçadas”, as “raparigas jeitosas”, etc. Deu muita importância, não ligou, é uma coisa que a chateia?
Estou habituada a ser tratada com condescendência. Fui tratada com condescendência durante algum tempo aqui. Mas acho que também temos que ter alguma condescendência com esse tipo de comentários. Não me chateiam, não me tiram o sono, porque isso seria idiota. Mas não lhes tiro a gravidade política. Não fico chateada porque alguém me chamou “menina” mas sei bem o que isto reflecte. Reflecte um sexismo latente na sociedade portuguesa que muitas vezes nem sequer é facilmente detectável.
Mas sentiu condescendência no parlamento por ser mulher ou por ser nova?
Ambas. Mas se fosse um miúdo novo com um fato à medida e com uma pose parlamentar o tratamento seria diferente. Essa condescendência tem a ver com tudo: com o facto de ser mulher, de não me comportar de não acordo com os cânones parlamentares mais ortodoxos…
Usar calças de ganga…
E os ténis, essas coisas.
Mas apesar de ter sentido essa condescendência, sentiu que foi temida na comissão do BES?
(risos). Eu não fiz absolutamente mais nada do que dizer aquilo que passava na cabeça de toda a gente. Acho que com o Bloco veio uma maior diversidade na representação política. Vieram jovens sem medo de ser jovens, que não estavam vestidos com o fato e a gravata, que falavam de forma diferente. Houve durante muito tempo no parlamento quase um código de conduta em que éramos violentíssimos no debate mas havia certos limites, certas palavras, certos protocolos que não são quebrados. Isso tem a ver com conteúdo e linguagem. Por exemplo, aconteceu-me várias vezes na Assembleia dizer palavras como “vergonha” e “mentira” e ser chamada à atenção porque não se dizia vergonha nem mentira. O problema é que era mesmo uma vergonha e uma mentira! Eu não tenho que estar a dizer que é uma inverdade! É uma mentira! E a inverdade era o termo parlamentar para a mentira… Quando se recusa este tipo de códigos de linguagem e se fala como qualquer outra pessoa falaria, ao início desarma-se um bocadinho quem do outro lado esperava não ser acusado de ter dito uma mentira ou de tomar uma decisão que foi uma vergonha.