Quando S. deu entrada em S. José, a barriga ainda não se notava. Uma hemorragia cerebral acabou por deixá-la em perigo de vida nos cuidados intensivos da Unidade de Neurocríticos do Hospital de São José. A 20 de Fevereiro, pelas 23h43, foi declarada morta, mas o que se passaria depois nunca tinha sido tentado no país. Na terça-feira, quase quatro meses depois, o filho nasceu às 32 semanas de gestação, com 2,350 kg.
S. chegou a saber o sexo do bebé e foi ela a escolher o nome, Lourenço. Mas já não viu a barriga crescer, algo que foi sempre impressionando a família, médicos e enfermeiros, que ontem assumiram que este caso afetou toda a equipa. “Todos os dias a equipa de enfermagem fazia a palpação do abdómen, diziam que uma vez que a mãe não tinha emoções era uma forma de sentir calor humano”, exemplificou ao i Ana Campos, obstetra e diretora de serviço da MAC, mostrando até que ponto este caso mexeu com os afetos de todos os profissionais.
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Os pormenores da história que está a comover o país e já foi notícia lá fora são escassos, até porque importa proteger uma família em sofrimento com uma perda depois de um luto que durou quase quatro meses, sem que pudessem fazer o funeral da mulher de 37 anos. Dada a delicadeza da situação, S. não foi transferida para a maternidade, o bebé nasceu numa ala dos cuidados intensivos. Quando Lourenço foi tirado da barriga da mãe, chorou com força, como num parto normal. Seria transferido para a unidade de cuidados intensivos neonatais da Maternidade Alfredo da Costa. Depois da cesariana, as máquinas foram desligadas e o corpo da mãe foi entregue à família.
“Doou o corpo ao seu filho” Ontem, numa conferência de imprensa no Hospital de S. José, os responsáveis da equipa multidisciplinar envolvida neste nascimento explicaram que a decisão de continuar a gravidez foi tomada antes de haver consentimento da família, justificando ser esse o enquadramento jurídico nestes casos, mas indicaram que a mãe reiterou sempre a intenção de ter este bebé, que seria o seu segundo filho. Logo após ser declarada a morte cerebral, como é habitual, foram feitas diligências para avançar com a doação de órgãos, mas uma vez que o feto mantinha sinais vitais, e tendo sido ultrapassado o prazo legal para interromper a gravidez (12 semanas), foi iniciado um processo de reflexão clínica que envolveu também a comissão de ética do hospital. Decidido manter-se a gravidez, iniciou-se um processo junto do Ministério Público, que “aceitou tutelar a vida fetal”, revelou o hospital.
A família viria a acordar a continuação da gravidez e manifestar a intenção de ficar com a criança, o que deverá suceder logo que o menino tenha alta, sendo que o centro hospitalar fará essa comunicação ao MP. Segundo a unidade, que tenciona dar todos os dias notícias sobre a evolução do recém-nascido, nunca houve oposição da família e, se tudo correr bem, o bebé deverá poder ir para casa dentro de três semanas, quando completar as 35. “Esta mãe foi uma incubadora viva. Doou o corpo ao seu filho”, salientou Gonçalo Cordeiro Ferreira, responsável pela comissão de ética do Centro Hospitalar Lisboa Central, homenageando a mulher de 37 anos.
Caso inédito A gestação em morte cerebral foi prolongada durante 107 dias. Atualmente, o caso mais longo publicado na literatura médica é de 110 dias e aconteceu nos Emirados Árabes Unidos. Hipotensão e infeções foram algumas complicações e o bebé acabou por nascer com apenas 750 gramas. Neste caso em Lisboa, os médicos reconheceram que houve alguns episódios de infeção que foram detetados e debelados a tempo mas nunca houve um perigo eminente de vida para o bebé, que até nasceu com mais peso do que seria habitual às 32 semanas de gestação, algo que a equipa ainda não consegue explicar mas poderá ser da própria criança. Ana Campos revelou ao i que, semana a semana, iam renovando o otimismo. A meta era poderem chegar às 24 semanas, quando o feto seria viável. Acabaram por prolongar até às 32, quando de acordo com a literatura internacional a hipótese de sobrevivência é de 98% e o risco de sequelas cai para 2%.
Os médicos não sabem ainda se o período em que a mãe esteve sem suporte de vida avançado e sem oxigenação normal (em estado de hipoxia) teve efeito na criança, mas os primeiros exames sugerem que não. Da mesma forma, não se se sabe que impacto terá a ausência de afetos mas também o facto de o bebé ter crescido num ambiente sempre estável, em que não havia as flutuações naturais nos períodos de vigília e sono da mãe mas também emocionais. Os médicos explicaram que os únicos fármacos administrados ao longo destas 15 semanas visavam manter os níveis hormonais e as funções orgânicas dentro do que seria normal, descartando eventuais sequelas para o bebé que resultem da exposição a químicos. Nas próximas semanas será feita uma nova ressonância magnética cerebral para avaliar o recém-nascido, que, para já, parece de boa saúde. Dado o nascimento prematuro, permanece, contudo, numa incubadora com ventilação. Para ter alta terá de conseguir respirar sozinho e aprender a mamar. “Estamos numa viagem. Há todo um percurso a percorrer”, disse a neonatologista da MAC Teresa Tomé.