Do outro lado do vidro


Achei que ele tinha sorte por estar no quarto do isolamento. Tinha mais espaço, mais privacidade, uma casa de banho privada e um telefone só para si. Eu gostava de colocar as mãos no vidro, de sorrir para ele e de lhe dizer olá. Achava impressionante o facto de as mães não ralharem por deixarmos…


A mãe do Nuno ficava do outro lado do espelho, sentada numa cadeira branca a fazer tricô, e eu nunca percebi o que estava ela a criar. Uma camisola? Um casaco? Um cachecol? Acho que ela fazia e desfazia, nunca concluindo nada, ganhando tempo e uma justificação prática para estar ali sentada. A mãe do Nuno, na verdade, estava só a esperar. As mães esperam sempre, não é? 

E o Nuno, a quem não via o sorriso, porque estava sempre de máscara, sorria com os olhos e isso era suficiente para o achar lindo. O Nuno via televisão com as mãos atrás da cabeça, de forma tão descontraída (pelo menos, a mim parecia-me), parecendo-me também que o Nuno tinha muita sorte – para mim, ele tinha muita sorte.

Depois de bater no vidro e de dizer olá ao Nuno, voltava para o meu quarto de seis camas e continuava a achar que um dia também queria ir para o quarto do isolamento, para poder ver televisão e descansar, descontraída. Será que a minha mãe sabia fazer tricô? Sim, sabia, mas ela preferia andar a passear os doentes que estavam em cadeiras de rodas, dar o almoço às senhoras que não conseguiam agarrar nos talheres, explicar os caminhos e dizer aos velhinhos onde era a casa de banho. A minha mãe gostava de se sentir útil, dizia ela, e gostava de achar que pertencia ali, pensava eu. 

O Nuno continuava no quarto do isolamento e eu achava que ele tinha tanta sorte. Sendo o filho um sortudo, não entendia porque chorava a mãe do Nuno enquanto conversava com a minha. A minha mãe apoiava, consolava e dizia às outras mães que tinham de ir descansar um bocadinho ou convidava-as a beber um café, quase como se ela não fosse uma delas. E eu via a minha mãe a ir ali ao fundo, pelo corredor, mas sem se arrastar, sem lhe ver dor, com precisão de passo, com pressa, como se não fosse uma mãe que espera. Eu olhava para a minha mãe tão despachada que queria mandar mais que os médicos e achava que ela ansiava pelo dia em que lhe ofereceriam uma bata e um bloco de notas, para ser ela a dar-me alta e dizer-me que eu já estava bem. 

Mas depois, quando os médicos a cumprimentavam com um “bom dia, mãe”, quando ela era a mãe e não a Dona Jacinta, quando lhe era pedido que saísse do quarto, que fosse ela agora dar uma volta e voltasse depois, a minha mãe sentava-se na cadeira branca ao meu lado, pedindo baixinho: “Deixem-me ficar aqui e nem darão por mim. Fico aqui neste cantinho.” E a minha mãe transformava-se no pássaro que pousa no fio elétrico de tal forma leve e discreta que é impossível dar por ele – porque as mães esperam sempre.

Lembro-me de perceber que o Nuno estava a ver desenhos animados. Caraças. O Nuno tem sorte, pensei. E o mais inacreditável é que também tinha um comando só seu – como se fosse impossível ser mais patrão que isto. Um quarto, uma televisão e um comando. Que boss que era o Nuno. E eu com um quarto de seis camas, demasiado ocupado e com demasiadas histórias. 

As minhas companheiras de quarto, as faladoras e divertidas, obrigavam--me a socializar com elas, perguntando-me coisas e oferecendo-me bolachas. E eu que não me apetecia gostar muito de ninguém. O Nuno não tinha de gostar de ninguém, por isso é que eu gostava dele. Porque podia o Nuno ter um quarto só seu? Porque é que o meu tinha tantas histórias lá dentro? Porque é que a nossa televisão estava sempre desligada? Onde é que estavam os meus desenhos animados? Cheguei a pensar em bater-lhe no vidro e perguntar-lhe se queria trocar de lugar comigo, mas depois já não quis fazer isso. Um dia fui dizer olá ao Nuno e vi-o falar ao telefone para o outro lado do vidro, e já não parecia descontraído, mas sim cansado. E a mãe do Nuno chorava, com a mão colada ao vidro, porque só ouvir a voz já não chegava. E o Nuno chorava também. 

O Nuno não voltou para casa. A mãe dele não aguentou que fossem separados de novo, agora não por um vidro, mas pela morte, e decidiu voar com ele. E eu e a minha mãe ficámos incrédulas com o desfecho tão dramático e por sabermos que, às vezes, as mães não aguentam e deixam as agulhas cair. 

Deixei de querer a televisão do Nuno, o comando do Nuno, a casa de banho privada do Nuno. Bastava-me a minha mãe, sem vidro, ao pé de mim. E percebi que talvez tivesse entendido tudo errado. Talvez a minha mãe nunca tivesse querido pertencer. Talvez fosse elétrica e fugidia porque não queria ficar. Estava de passagem. Porque nós teríamos de ir embora dali. Juntas. 

Dedicado ao pai do Nuno e aos seus irmãos e desejando que estejam em paz.

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Escreve à quinta-feira


Do outro lado do vidro


Achei que ele tinha sorte por estar no quarto do isolamento. Tinha mais espaço, mais privacidade, uma casa de banho privada e um telefone só para si. Eu gostava de colocar as mãos no vidro, de sorrir para ele e de lhe dizer olá. Achava impressionante o facto de as mães não ralharem por deixarmos…


A mãe do Nuno ficava do outro lado do espelho, sentada numa cadeira branca a fazer tricô, e eu nunca percebi o que estava ela a criar. Uma camisola? Um casaco? Um cachecol? Acho que ela fazia e desfazia, nunca concluindo nada, ganhando tempo e uma justificação prática para estar ali sentada. A mãe do Nuno, na verdade, estava só a esperar. As mães esperam sempre, não é? 

E o Nuno, a quem não via o sorriso, porque estava sempre de máscara, sorria com os olhos e isso era suficiente para o achar lindo. O Nuno via televisão com as mãos atrás da cabeça, de forma tão descontraída (pelo menos, a mim parecia-me), parecendo-me também que o Nuno tinha muita sorte – para mim, ele tinha muita sorte.

Depois de bater no vidro e de dizer olá ao Nuno, voltava para o meu quarto de seis camas e continuava a achar que um dia também queria ir para o quarto do isolamento, para poder ver televisão e descansar, descontraída. Será que a minha mãe sabia fazer tricô? Sim, sabia, mas ela preferia andar a passear os doentes que estavam em cadeiras de rodas, dar o almoço às senhoras que não conseguiam agarrar nos talheres, explicar os caminhos e dizer aos velhinhos onde era a casa de banho. A minha mãe gostava de se sentir útil, dizia ela, e gostava de achar que pertencia ali, pensava eu. 

O Nuno continuava no quarto do isolamento e eu achava que ele tinha tanta sorte. Sendo o filho um sortudo, não entendia porque chorava a mãe do Nuno enquanto conversava com a minha. A minha mãe apoiava, consolava e dizia às outras mães que tinham de ir descansar um bocadinho ou convidava-as a beber um café, quase como se ela não fosse uma delas. E eu via a minha mãe a ir ali ao fundo, pelo corredor, mas sem se arrastar, sem lhe ver dor, com precisão de passo, com pressa, como se não fosse uma mãe que espera. Eu olhava para a minha mãe tão despachada que queria mandar mais que os médicos e achava que ela ansiava pelo dia em que lhe ofereceriam uma bata e um bloco de notas, para ser ela a dar-me alta e dizer-me que eu já estava bem. 

Mas depois, quando os médicos a cumprimentavam com um “bom dia, mãe”, quando ela era a mãe e não a Dona Jacinta, quando lhe era pedido que saísse do quarto, que fosse ela agora dar uma volta e voltasse depois, a minha mãe sentava-se na cadeira branca ao meu lado, pedindo baixinho: “Deixem-me ficar aqui e nem darão por mim. Fico aqui neste cantinho.” E a minha mãe transformava-se no pássaro que pousa no fio elétrico de tal forma leve e discreta que é impossível dar por ele – porque as mães esperam sempre.

Lembro-me de perceber que o Nuno estava a ver desenhos animados. Caraças. O Nuno tem sorte, pensei. E o mais inacreditável é que também tinha um comando só seu – como se fosse impossível ser mais patrão que isto. Um quarto, uma televisão e um comando. Que boss que era o Nuno. E eu com um quarto de seis camas, demasiado ocupado e com demasiadas histórias. 

As minhas companheiras de quarto, as faladoras e divertidas, obrigavam--me a socializar com elas, perguntando-me coisas e oferecendo-me bolachas. E eu que não me apetecia gostar muito de ninguém. O Nuno não tinha de gostar de ninguém, por isso é que eu gostava dele. Porque podia o Nuno ter um quarto só seu? Porque é que o meu tinha tantas histórias lá dentro? Porque é que a nossa televisão estava sempre desligada? Onde é que estavam os meus desenhos animados? Cheguei a pensar em bater-lhe no vidro e perguntar-lhe se queria trocar de lugar comigo, mas depois já não quis fazer isso. Um dia fui dizer olá ao Nuno e vi-o falar ao telefone para o outro lado do vidro, e já não parecia descontraído, mas sim cansado. E a mãe do Nuno chorava, com a mão colada ao vidro, porque só ouvir a voz já não chegava. E o Nuno chorava também. 

O Nuno não voltou para casa. A mãe dele não aguentou que fossem separados de novo, agora não por um vidro, mas pela morte, e decidiu voar com ele. E eu e a minha mãe ficámos incrédulas com o desfecho tão dramático e por sabermos que, às vezes, as mães não aguentam e deixam as agulhas cair. 

Deixei de querer a televisão do Nuno, o comando do Nuno, a casa de banho privada do Nuno. Bastava-me a minha mãe, sem vidro, ao pé de mim. E percebi que talvez tivesse entendido tudo errado. Talvez a minha mãe nunca tivesse querido pertencer. Talvez fosse elétrica e fugidia porque não queria ficar. Estava de passagem. Porque nós teríamos de ir embora dali. Juntas. 

Dedicado ao pai do Nuno e aos seus irmãos e desejando que estejam em paz.

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