Começamos com as minhas queixas de comunicação com os brasileiros: quando fiz a cobertura do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, na inscrição, a pessoa responsável insistia em falar-me em inglês. Perante os meus protestos de que era português, a funcionária respondeu–me educadamente: “Of course you are.” Gregório Duvivier garante que não vai haver problema com ele: “Pode falar português que eu sou bilingue.” Por falar em comunicação, no “Porta dos Fundos” apenas dois estão contra o impeachment, mas discordam com carinho. A divergência não os leva ao ódio. Conseguem dizer mal dos poderosos da esquerda e da direita. O filme que mais irritou “os golpistas” foi escrito por Fábio Porchat, mas é Gregório Duvivier quem suscita os maiores ódios da direita.
Para que serve o humor?
Para um monte de coisas, mas talvez a essencial seja lançar um pouco de dúvidas onde há certezas. É a maior arma contra as certezas absolutas, contra fanatismo, a obviedade, o tédio. Como eu o vejo é uma arma de instaurar confusão onde há ordem instaurada e há aquilo a que se chama a maioria silenciosa. Onde há o cliché, a repetição e os chavões…
Há uma grande evolução entre o bobo da corte, acorrentado aos soberanos, e os humoristas de agora?
Até o bobo da corte, pelo que sei, era a única pessoa que tinha permissão de falar verdade. Se calhar, o lugar humorístico é hoje esse mesmo: aquele que tem permissão para falar verdade. Brincando, brincando, nós dizemos coisas que mais ninguém pode falar.
Na sua biografia “oficial” na Wikipédia diz que o humor também lhe permitiu combater a timidez.
(Risos) O humor tem essa capacidade de dizer verdades que você não diria de outra maneira, mas também tem a capacidade de criar laços e conexões entre as pessoas: uma piada de que alguém ri significa que você já criou uma conexão. O humor é a melhor maneira de quebrar fronteiras e barreiras. Para mim também foi a maneira de me conectar com o mundo, de me sentir ser humano. Quando você sobe no palco, você faz uma piada e 400 pessoas riem – são 400 relações afetivas e interpessoais que [potencialmente] acontecem. Então o humor também serve para isso. Para suprir uma carência afetiva.
E quando percebeu que tinha graça?
Até hoje tenho essa dúvida. Acho que o segredo do humorista é não saber que tem graça. Quando ele acha que tem graça é muito perigoso, até é possível que deixe de a ter. Em geral, a graça vem de ser uma coisa séria para a pessoa. Você quer fazer rir? Tem de tocar no seu ponto mais doloroso. Em geral, o erro que as pessoas cometem é deixar claro que querem fazer as pessoas rir. Se eu lhe disser, “vou lhe contar uma coisa para você rir”, você não ri. Agora, se eu te contar uma coisa que me angustia muito, vai ser engraçado porque, em geral, a graça está na verdade.
É uma espécie de humor contra si próprio.
Nada nos faz rir mais do que a especificidade dos seres humanos, aquilo que nos torna profundamente humanos: as nossas dores, lástimas e tragédias pessoais são o material para as piadas.
E há humor contra a morte?
É talvez a única coisa que haja contra ela. O humor e a poesia são coisas que fazemos contra a morte. Permitem-nos rir dela. Eu amo as piadas de epitáfio, piadas clássicas do sujeito a ir para a forca e a dizer: “Vou comer carne porque estou a cortar nos hidratos, porque fazem mal.” Só o humor salva neste momento.
É um equilíbrio difícil. Há um filme do Bob Fosse sobre o cómico Lenny Bruce, que faz humor sobre aquilo que lhe dói mas, a certa altura, é tudo tão triste e raivoso que já ninguém consegue rir.
Um grande filme. Os perigos do humor são ou ele ser muito supérfluo – sem densidade e tristeza o humor não tem graça, o palhaço tem que ter alguma tristeza – ou quando tem tristeza demais, porque também não tem graça. Para ter graça tem que ter dor, mas dor transfigurada e sublimada. A depressão pura e simples não tem graça nenhuma, ela deprime a plateia. Tem que ser a depressão com volta por cima. Esta é a grande capacidade do comediante: ele foi uma pessoa que foi ao inferno e voltou. Se estiver no inferno ainda, então ele não tem graça.
Os povos distinguem-se também pelo seu humor? Diz-se que há um humor do centro da Europa, um humor judaico. Há características de humor que distinguem um brasileiro de um português?
Totalmente. Eu vejo o humor brasileiro totalmente diferente do português. O humor português tem uma grande filiação nos anglo-saxónicos, no sentido que vocês fazem humor a sério. Fazem a piada sem rir, o que eu acho a maneira mais nobre de a fazer, tem essa tendência séria e reflexiva, às vezes melancólica. O brasileiro já vem a rir, “hahahah”, o tom já é outro, é mais “piadento”. Eu, particularmente, acho menos graça a isso. As nossas referências na “Porta dos Fundos” não são brasileiras, são até portuguesas. Eu, por exemplo, sou muito fã dos Gato Fedorento e de Raul Solnado, que acho uma referência mundial, gente que faz humor com poesia, reflexão, e que mistura o humor com outros géneros.
Aqui em Portugal saiu um livro seu que agrupa crónicas suas na “Folha de São Paulo”. Foi fácil escrever num jornal?
Não foi fácil. Foi um convite incrível. Toda a semana eu me estou digladiando com a dúvida do que dizer. A “Folha” é o maior jornal do Brasil em termos de alcance e repercussão. É uma grande responsabilidade. Por outro lado, me chamaram pela irreverência, não pela experiência, para ser uma outra voz no jornal. É isso que eu tenho tentado fazer: ser a oposição no jornal.
Um grande jornalista e poeta português, Manuel António Pina, dizia que normalmente não tinha opinião sobre nada e era obrigado a escrever opiniões todos os dias. Não sente o drama da folha em branco?
E é sobre isso que fala a peça que estou a apresentar em Portugal, “Uma Noite na Lua”. Ela fala de um autor que tem que fazer uma peça em poucas horas, e os espectadores vão acompanhar esse processo. É um thriller que tem um relógio com uma contagem decrescente. Eu amo essa peça por isso, porque tem muito de mim, fala de um autor que tem que escrever. Eu tenho que escrever toda a semana para a Folha e o “Porta dos Fundos”. É um exercício semanal de espremer uma fruta que é o cérebro.
Você tem um texto no livro em que fala de um autor que pensa que era tão bom morrer atropelado, assim não teria de entregar o texto e até podia ganhar nome de rua. Mas, ao mesmo tempo, a peça é uma metáfora da vida, não? Todos nós não temos texto escrito e precisamos de criar um sentido…
Está diretamente ligado à nossa angústia de vida, que é uma pressão gigantesca. Mesmo quem não escreve vive isso. O tempo está cada vez mais…[bum bum, olha para o lado], nossa o cara está carregando um piano, não é fácil…. O tempo das coisas está cada vez mais corrido.
Se calhar, essa sucessão de acontecimentos que pressiona o tempo é uma forma de não encontrar sentido para as coisas…
Hoje em dia temos uma negação grande da reflexão. A gente evita ao máximo fazê-lo. Deglutimos uma quantidade enorme de informação e pouca quantidade de reflexão sobre aquilo que se vê, ouve e lê. Por isso é que eu acho cada vez mais importante o lugar da crítica num jornal que é composto de certezas e de informações ditas objetivas. “Dilma cai por causa da corrupção” – eu acho muito importante questionar, é esse o lugar da crítica e do humor: “Como assim? É por causa da corrupção que Dilma cai? Mas os que estão assumindo não são muito mais corruptos? Não será que ela está caindo exatamente por ter incomodado essas pessoas?”
Tinha uma crónica a dizer que era a pessoa mais ignorante acerca desta crise, toda a gente debitava certezas e você só tinha dúvidas…
É, eu tento muito continuar ignorante acerca desta crise. Quando eu digo ignorante, significa rico das suas dúvidas.
Mas a crise no Brasil não fez exatamente o contrário, criou dois campos que não têm nenhuma forma de dúvida?
A crise polariza as pessoas, elas ficam cheias de ódio, e a guerra fica entre potências, mas não entre poder e as potências. Deleuze faz essa distinção que eu acho fundamental: poder são aqueles que estão no poder institucional e nós somos potência. Nós não nos temos que agredir, temos que combater aqueles que estão no poder. Para mim, uma briga tem de ser contra o poder instaurado. A pessoa que quer que Dilma fique e o cara que quer que caia podem querer mais ou menos a mesma coisa: o fim da corrupção no Brasil. Temos que lutar todos contra um poder corrupto. Mas quando a gente xinga o do lado não está a fazer um debate saudável. Temos que fazer um combate contra o poder.
Mas o poder que existe não serve parte da sociedade?
Totalmente. Eu não sou anarquista. Eu não acredito em democracia representativa pura e simples em que a gente vota e esquece o que se passa nos próximos quatro anos. A democracia é diária e direta, não existe democracia sem pressão popular diária. Não acredito nessa representatividade cega em que você vota para não pensar em política. Infelizmente, quanto menos se pensar em política, pior a política é feita.
Essa ideia de poder constituinte que passa por Deleuze e Negri é muito interessante, mas houve aquelas enormes manifestações no Junho de 2013 e isso não correspondeu a uma alteração política e democrática de fundo.
Ao mesmo tempo não tiveram, mas tiveram. Não foi direto, mas não tenho dúvidas de que Junho foi um despertar político para muita gente, tanto da esquerda como da direita. Por um lado, começaram as passeatas que permitiram o processo político que está a derrubar a Dilma. Por outro lado, começaram uma série de movimentos sociais muito importantes para o Brasil de hoje: as escolas públicas estão ocupadas pelos estudantes, as mulheres foram para as ruas pedir a legalização do aborto. Junho foi um despertar político tanto para a esquerda como para a direita. Antes dessa data, o Brasil não saía às ruas há muito tempo. Claro que não foi direto, “fomos às ruas e tudo mudou”. Mas foi uma semente plantada.
Mas verifica-se que há vários ciclos de contestação ao longo dos tempos: o dos fóruns sociais mundial e europeu, os indignados, o Occupy, etc… E nada mudou profundamente, parece que tudo ficou na mesma.
Eu acho que há sempre qualquer coisa que fica. Não se falava muito desse conceito de 1% antes do Occupy, é um conceito fundamental: como é possível que um por cento da população tenha metade da riqueza do mundo? Que coisa bizarra é essa? E no Brasil essa desigualdade ainda é maior. Isso foi o Occupy que trouxe; pelo menos, que lembrou para a minha geração. A geração dos meus pais no Brasil foi silenciada através de torturas e gente presa durante a ditadura. Depois veio uma geração, que é um pouco a minha, que foi silenciada pela esquerda: “O governo é de esquerda, por isso não vamos protestar.” Só que fomos percebendo aos poucos, com ações, a partir de 2013, que o governo não é de esquerda. O PT não faz uma política de esquerda. Claro que houve conquistas sociais, mas aquilo que a gente tem de perceber é que ter um governo supostamente de esquerda não nos pode nem deve silenciar. Nada nos deve impedir de poder ir às ruas, como aconteceu no tempo do governo do PT, em que a juventude foi muito silenciada, essa mesma juventude que estava supostamente representada no poder, quando na verdade não estava. O PT fez um governo super de direita. Com conquistas sociais, é verdade, com inclusão de pessoas através do consumo, mas não pela educação e cultura. Foi um governo incapaz de fazer uma reforma agrária. Em centenas de anos, o Brasil nunca fez uma reforma agrária. O PT foi absolutamente retrógrado em termos ambientais. Não resolveu a questão indígena, houve muito poucas demarcações de terras indígenas. Questões LGBT, gays e transexuais, muito pouco. Questões feministas, também pouquíssimo: o aborto nem foi discutido.
O aborto é proibido no Brasil em qualquer circunstância. E apesar de tudo isso, a maior parte das pessoas não foram para as ruas porque, supostamente, estavam representadas.
Aconteceu o Junho de 2013, mas continua a não haver condições para uma democracia direta. Todos os órgãos de comunicação social foram a favor do impeachment. O tipo do “Intercept” escrevia que a situação no Brasil era como se o Tea Party tivesse, para além da FOX News, a CNN, a ABC, a CBS e o “New York Times”, o “Washington Post” e todos os outros órgãos de comunicação social do país.
O Glenn Greenwald, o cara do “Intercept”, está a fazer um trabalho precioso sobre o Brasil. Quem faz a melhor cobertura noticiosa sobre a situação do Brasil é um gringo norte-americano – isso explica alguma coisa da situação. Eles estão fazendo uma coisa preciosa que ninguém tinha feito ainda: mostrar a parcialidade da imprensa e comunicação social no Brasil. Eles estão abrindo os olhos para a imprensa e opinião pública internacional sobre a imprensa brasileira, que é golpista. E é historicamente golpista. A capa do “Estadão” (“Estado de São Paulo”) era, em 1964, “Finalmente vence a revolução democrática”, quando o que aconteceu em 1964, com os militares nas ruas, foi o início de uma ditadura sangrenta. A imprensa de grande tiragem no Brasil é de direita. Não existe um jornal de esquerda no Brasil.
E porque é que não existe?
Porque falham e vão à falência. No Brasil, o principal financiador dos jornais e da comunicação social é o governo: os governos municipais, estaduais e federal. O prefeito do Rio anuncia 150 milhões de reais por ano, isso é suficiente para manter um jornal. Se atacarem a prefeitura e o seu trabalho, e cair esse dinheiro, o jornal fecha. Foi o que aconteceu ao “Jornal do Brasil”, que era o outro órgão de imprensa no Rio de Janeiro.
E o Estado, no Brasil, não ajuda à diversidade – “este jornal está falindo, vou ajudar”, como faz com os bancos. O Estado e sobretudo as prefeituras têm uma relação muito promíscua: o “Globo” é um braço armado do prefeito do Rio, e a Rede Globo também. Caiu uma ciclovia no Rio de Janeiro, feita pelo prefeito Eduardo Pais, uma coisa criminosa que ele fez de qualquer jeito, com 45 milhões de reais ele fez uma ciclovia porca, e os jornais falam daquilo, mas culpam o mar, que era muito violento. Não referiam sequer nas notícias o nome do prefeito. A matéria do jornal não falava dos problemas da construção, falava apenas da violência das ondas no Rio que impedem a gente de ter uma ciclovia junto ao mar, como se isso fosse verdade. Não é ingenuidade, é má-fé mesmo. Porque é que isso acontece? Porque a prefeitura patrocina o jornal. O problema da imprensa no Brasil nem sequer é que eles são de direita, é que eles são governistas.
Mas o PT teve o governo muito tempo e não fez um jornal.
Um dos problemas do PT é que não fez democratização dos media. Ele não investiu numa televisão pública. O PT continuou a colocar milhões de reais na Globo, apesar de ela falar mal do PT. Essa é, aliás, uma virtude que pode ser atribuída ao governo do PT. Ele não direcionou o dinheiro da propaganda para órgãos que lhe seriam favoráveis. Nunca se anunciou tanto, por parte do governo federal, na Globo como no tempo do PT. O que eu acho uma estupidez. A primeira coisa que o PT devia ter feito era ter cortado a verba da imprensa golpista. O Lula não chama PIG (Partido da Imprensa Golpista) a essa imprensa? Então porque é que está financiando? Corta e faz uma rede pública de verdade, que não vai ser pró-governo, mas pelo menos vai mostrar mais respeito e qualidade, como já teve a TV Cultura, já foi ótima. A rede pública hoje está supersucateada.
Quando lançaram a “Porta dos Fundos” fizeram-no na internet para serem livres e independentes dos grande meios de comunicação social. Dizem no site: “O Porta dos Fundos é um coletivo de humor criado por cinco amigos que, insatisfeitos com a falta de liberdade criativa da TV brasileira, decidiram montar um canal de esquetes de humor no YouTube.”
A gente não tinha esse espaço nem essa oportunidade de fazer uma coisa livre na TV aberta.
Cá vocês passaram a ser distribuídos pela FOX.
No Brasil também, mas depois. A gente trabalhava na televisão, todos nós éramos contratados da Globo. Porque é que nós não fizemos lá o “Porta dos Fundos”, já que trabalhávamos lá? Não têm espaço. Eles dizem que querem uma coisa nova, contratam jovens, mas contratam para colocar na geladeira ou cercear, você dificilmente vai fazer uma mudança lá de dentro. Eles depois até podem comprar e repassar na FOX ou na Comedy Center, mas o nosso lugar, com liberdade, continua a ser na internet.
Mas é rentável, a internet?
É rentável, mas ainda menos que a televisão, o que é uma pena. O dinheiro ainda está na televisão. Mas isso está migrando. O espectador está migrando, os jovens não veem mais televisão. Os jovens não sabem mais, inclusive, o que é esperar por um programa. Lembra, tínhamos que ficar esperando na televisão para o programa passar, você se lembra disso? Era uma estupidez.
Eu tenho de esperar pelo “Game of Thrones”, só dá para ver nos diversos suportes quando é feito (risos).
Talvez o “Game of Thrones” seja uma exceção. Mas a maioria das pessoas assiste baixando na internet. Muita gente nem tem o canal, esse conceito da televisão está acabando, e não é necessariamente ruim. É preciso democratizar a produção.
Mas se há esse espaço para o humor, porque não há para as notícias?
Eu acho que há. No Brasil, quem tem feito a melhor cobertura é Intercept, Media Ninja, o Fluxo, que é outro meio de rede e independente. São os únicos que eu confio. A Globo News me dá náuseas.
Quando o Jon Stewart fazia o “Daily Show”, as sondagens mostravam que era a fonte de notícias em que os jovens dos EUA mais confiavam.
Acho que isso é uma mudança. Nos EUA, 60% da população jovem, de 15 aos 25 anos, afirmam que a sua principal fonte de informação é o humor, não é o jornal impresso nem o noticiário televisivo. Ele já querem a notícia interpretada pelo humorista. É muito mais franco, sabe-se que é alguém, o Jon Stewart ou outro, que dá a sua versão da notícia, não aparece vinda do céu, como os jornais fingem. A informação é, normalmente, muito suspeita e interessada e aparece como não sendo feita por ninguém.
Mas isso é um problema de sempre, a ligação dos media com os muito poderosos e a sua impunidade.
Não há impunidade para todos. No Brasil, a população carcerária é de 700 mil pessoas. No Brasil, o problema não é quando você rouba muito, é quando você rouba pouco. O Brasil é um país de impunidade? Apenas para os ricos – é o país com maior população prisional da América Latina.