Mulheres à beira de um ataque de nervos

Mulheres à beira de um ataque de nervos


Kristen Stewart procura o irmão, Almodóvar coloca uma atrizà descoberta do fantasma da filha, os irmãos Dardenne imaginamuma médica em busca da identidade e Park Chan-Wook celebrao erotismo no feminino. Assim vai Cannes


Comecemos pelo prato forte. E por dizer que esta edição do festival já ilustrou o n.o 69 com uma muito adequada posição erótica, replicada com entusiasmo por duas mulheres, no mais recente filme do coreano Park Chan-Wook, “Mademoiselle”. Trilham-se aqui as atribulações de uma hábil coreana no Japão (Kim Tae-ri), nos anos 30, e a estranha relação que manterá com a dama nipónica (Kim Min-hee) que, por sua vez, passará as passinhas nas mãos do seu tio, o conde Fujiwara (Ha Jung-hoo). Para aperitivo desta primeira incursão de Park no cinema de época, até que não está mal, ainda que o desejado clímax do espetador fique algo comprometido por algum excesso de requinte do decorativismo.

Sabemos bem do apetite do autor do pungente “Oldboy”, bem como do dececionante “Stoker”, para trilhar o lado mais transgressor do cinema e submeter o espetador a uma espécie de incómodo assumido. Foi o que procurou fazer com a adaptação do romance “Finger-smith”, da britânica Sarah Walters. O resultado é um drama intenso e palpitante, frequentemente sedutor pelo nível elevado do recorte de produção, por vezes provocador pelos habituais requintes de malvadez, sejam de natureza punitiva, vingativa ou sexual, tão talhados para o realizador. Mesmo tratando-se de um cineasta sagaz e capaz de temperar os seus filmes com elementos titilantes e proibidos, Park acabou aqui, de certa forma, traído pelo luxo e longe do requinte erótico de “A Vida de Adèle”, Palma de Ouro de 2013.

Quem parece estar também longe da Palma de Ouro é Pedro Almodóvar, isto apesar do esforço visível para regressar à sua melhor forma, ou seja, aos seus melhores filmes e à possibilidade de uma distinção em Cannes – os melhores prémios que conseguiu na Riviera foi o de realização, para “Tudo Sobre a Minha Mãe” (1999), e o de melhor argumento, por “Volver” (2006). Será essa a razão porque “Julieta” parece uma espécie de primo afastado de ambos? Com a particularidade de fazer enormes piscadelas de olho a “Fala com Ela” (2002)? Pena é que seja tudo forma e estilo neste “Julieta”, ou emoção embalada sem pinga de coração. Pelo menos há um progresso em relação ao bimbo e disparatado “Amantes Passageiros”.

A história de Julieta (interpretada em duas fases, primeiro por Adriana Ugarte e, num período posterior, por Emma Suaréz), é baseada em três short stories de Alice Munro, entretecendo o período que medeia a tragédia familiar e a forma como ela e a filha irão lidar com o tempo e as modificações interiores. No papel, esse jogo até teria o poder de oferecer uma expectativa diversa; pena é que, na tela, essa deriva sinuosa não ofereça qualquer novidade ao cinema de Almodóvar, cada vez mais perdido num estilo barroco.

Uma outra inquietação leva-nos a interrogar-nos sobre as intenções de Olivier Assayas em “Personal Shopper”, uma espécie de ghost story – nós preferimos chamar-lhe caça-fantasmas – em que recupera a colaboração da americana Kristen Stewart, que tão boa conta deu no fantástico “As Nuvens de Sils Maria”, aqui num prolongamento da personagem desse filme, assistente pessoal da estrela interpretada por Juliette Binoche, variando para a tal personal shopper de uma socialite e trabalhando como médium freelance nas horas vagas. O que mais interessa neste filme – a única coisa? – é o seu lado de caça-fantasmas. Em particular com a apetência de poder estabelecer contacto com o mano gémeo falecido e que aparece apenas para deitar uns copos ao chão ou bater na madeira.

É claro que houve quem visse em “Personal Shopper” a obra-prima que não identificamos. Ficamo-nos por esta louvável tentativa de Assayas no regresso a um certo neo-horror, mas onde o mais insólito do filme é a longuíssima conversa com o além através de sms… Para um universo mais insólito, fiquemo-nos apenas por “Demonlover”. Ah, sim, sempre temos as maminhas de Kristen Stewart. Mas sabem a pouquinho.

Por fim, tivemos hoje de manhã o novo filme dos manos Dardenne, “La Fille Inconnue” (A Rapariga Desconhecida?), uma nova incursão do cinema em movimento dos belgas no que pode ser entendido como um prolongamento natural da sua filmografia. Pode até identificar-se alguma proximidade com “Rosetta”, o filme que deu a primeira Palma de Ouro aos Dardenne, em 1999 (venceriam também em 2005, com “A Criança”). Com a particularidade de se cruzar com outras personagens deste universo fraternal, como Jeremy Renier (“A Promessa”, “A Criança” e “O Miúdo da Bicicleta”) e Olivier Gourmet (“A Promessa”, “A Criança” e “Os Dois Dias e Uma Noite”).

Ao ser confrontada pela polícia a propósito da morte de uma jovem que tentara, em vão, pedir ajuda no seu consultório, momento que fora captado pelas câmaras de segurança, a dra. Jenny (Adèle Haendel) como que assume parte dessa culpa e decide investigar por conta própria. Seria esta uma forma de dar ao corpo a sua identidade, mas também, do ponto de vista desta médica diligente, de não deixar o caso em aberto e cumprir uma função de humanidade.

O lado mais fascinante do filme é percebermos como esta médica cruza gradualmente a sua profissão com a de investigadora por conta própria. “La Fille Inconnue” até pode não estar ao nível dos filmes premiados desta dupla, mas também não os desmerece.