Ter cancro não é ser santo


Nem todos aproveitam as más fases das suas vidas para se tornarem melhores seres humanos e podem, pelo contrário, aprofundar o seu lado negro


Confesso que, mesmo inconscientemente, já tive este preconceito. Já gostei “antecipadamente” de pessoas, influenciada pelo facto de terem cancro. O sorriso grande, o humor, a simpatia, juntamente com a compaixão que senti, levaram-me a considerá-las boas pessoas. Julguei que estava a conhecer seres humanos fantásticos, por me impressionar a forma como encaravam a sua doença.

Estamos constantemente a julgar os outros e um julgamento é sempre baseado na nossa perceção das coisas, levando-nos, obviamente, ao engano. Já antes tinha caído neste erro de julgar pela aparência e atitude. Lembro-me de uma vez, nos jardins da Associação de Coimbra, durante a minha fase de solteirice, conversar com um rapaz de sorriso encantador, todo pintas e extrovertido, mas bronco que nem uma porta. Tudo isto durante, pelo menos, dois minutos e meio, e sempre na esperança que a beleza daquela cara transformasse a estupidez que lhe saía pela boca numa conversa interessante. Claro que não resultou. E eu, que o julguei interessante pelo sorriso, perdi dois minutos e meio de vida por me armar aos cucos e andar por aí a julgar as pessoas pelos sorrisos. E o triste é que esses dois minutos e meio poderiam ter sido gastos a ir à casa de banho – que é a única comparação justa que consigo fazer com a conversa que tive com este individuo. De qualquer forma, a minha maior aprendizagem surgiria depois, anos mais tarde, ao conhecer pessoas maravilhosas com cancro e sem cancro, e primos direitos do diabo com cancro e sem cancro.

E é tão fácil cairmos neste erro – olharmos para alguém que está numa situação frágil e difícil, neste caso com cancro, e decidirmos que é boa pessoa, porque talvez tenhamos o conceito de que as boas pessoas são aquelas que sofrem. Parece que a coisa funciona como as máquinas do metro – sem dor e sofrimento, a viagem não é validada.

Acho que pensei que o cancro tinha o dom de curar maus corações e olhem–me a ironia da coisa: achar o cancro curador. E pode ser! Mas a verdade é que nem todos aproveitam as más fases das suas vidas para se tornarem melhores seres humanos e podem, pelo contrário, aprofundar o seu lado negro. Será sempre uma escolha. Por que raio achamos que ter cancro é ser santo? Que é automaticamente a mesma coisa? E se percebêssemos agora que o Hitler tinha tido cancro? Invalidava o facto de aquele homem ter sido um monstro? O homem matou milhões de inocentes mas, coitado, teve cancro, por isso vamos fazer um minuto de silêncio em sua homenagem.

Eu sei que é difícil impressionarmo-nos com a postura e a atitude positiva de alguém perante uma dificuldade e percebermos, simultaneamente, que a personagem não vale um tostão furado. É um desgosto enorme. Criamos um monte de expectativas perante o nosso novo herói que acabam por sair goradas. Caraças. É tão violento como apanharmos o Homem-Aranha a pisar aranhas ou o Batman a caçar morcegos. Não pode ser, não bate certo, não faz sentido. Mas ter cancro não é ser santo. Eu sei, eu sei que supostamente não deveria ser assim. O cancro deveria servir para ensinar coisas às pessoas e acalmar-lhes aqueles egos saltitantes. O cancro não deveria encobrir a maldade nem ser um escudo, um escape para que más reses passem entre os pingos da chuva durante essa fase em que a sociedade os olha com mais complacência e compaixão. Mas, infelizmente, o cancro serve como desculpa, uma ferramenta para mostrarem aquilo que não são.

Um preconceito é sempre um preconceito. Seja por considerarmos o outro o melhor ser humano do mundo ou o pior. Não interessa. Não deveríamos colocar rótulos em ninguém, nem o rótulo de santo nem o de besta.

Porque depois não adianta de nada reclamar os dois minutos e meio que gastámos com gente que não interessa a ninguém. Mesmo que esse tempo gasto tivesse servido para fazermos um grande xixi.

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Escreve à quinta-feira


Ter cancro não é ser santo


Nem todos aproveitam as más fases das suas vidas para se tornarem melhores seres humanos e podem, pelo contrário, aprofundar o seu lado negro


Confesso que, mesmo inconscientemente, já tive este preconceito. Já gostei “antecipadamente” de pessoas, influenciada pelo facto de terem cancro. O sorriso grande, o humor, a simpatia, juntamente com a compaixão que senti, levaram-me a considerá-las boas pessoas. Julguei que estava a conhecer seres humanos fantásticos, por me impressionar a forma como encaravam a sua doença.

Estamos constantemente a julgar os outros e um julgamento é sempre baseado na nossa perceção das coisas, levando-nos, obviamente, ao engano. Já antes tinha caído neste erro de julgar pela aparência e atitude. Lembro-me de uma vez, nos jardins da Associação de Coimbra, durante a minha fase de solteirice, conversar com um rapaz de sorriso encantador, todo pintas e extrovertido, mas bronco que nem uma porta. Tudo isto durante, pelo menos, dois minutos e meio, e sempre na esperança que a beleza daquela cara transformasse a estupidez que lhe saía pela boca numa conversa interessante. Claro que não resultou. E eu, que o julguei interessante pelo sorriso, perdi dois minutos e meio de vida por me armar aos cucos e andar por aí a julgar as pessoas pelos sorrisos. E o triste é que esses dois minutos e meio poderiam ter sido gastos a ir à casa de banho – que é a única comparação justa que consigo fazer com a conversa que tive com este individuo. De qualquer forma, a minha maior aprendizagem surgiria depois, anos mais tarde, ao conhecer pessoas maravilhosas com cancro e sem cancro, e primos direitos do diabo com cancro e sem cancro.

E é tão fácil cairmos neste erro – olharmos para alguém que está numa situação frágil e difícil, neste caso com cancro, e decidirmos que é boa pessoa, porque talvez tenhamos o conceito de que as boas pessoas são aquelas que sofrem. Parece que a coisa funciona como as máquinas do metro – sem dor e sofrimento, a viagem não é validada.

Acho que pensei que o cancro tinha o dom de curar maus corações e olhem–me a ironia da coisa: achar o cancro curador. E pode ser! Mas a verdade é que nem todos aproveitam as más fases das suas vidas para se tornarem melhores seres humanos e podem, pelo contrário, aprofundar o seu lado negro. Será sempre uma escolha. Por que raio achamos que ter cancro é ser santo? Que é automaticamente a mesma coisa? E se percebêssemos agora que o Hitler tinha tido cancro? Invalidava o facto de aquele homem ter sido um monstro? O homem matou milhões de inocentes mas, coitado, teve cancro, por isso vamos fazer um minuto de silêncio em sua homenagem.

Eu sei que é difícil impressionarmo-nos com a postura e a atitude positiva de alguém perante uma dificuldade e percebermos, simultaneamente, que a personagem não vale um tostão furado. É um desgosto enorme. Criamos um monte de expectativas perante o nosso novo herói que acabam por sair goradas. Caraças. É tão violento como apanharmos o Homem-Aranha a pisar aranhas ou o Batman a caçar morcegos. Não pode ser, não bate certo, não faz sentido. Mas ter cancro não é ser santo. Eu sei, eu sei que supostamente não deveria ser assim. O cancro deveria servir para ensinar coisas às pessoas e acalmar-lhes aqueles egos saltitantes. O cancro não deveria encobrir a maldade nem ser um escudo, um escape para que más reses passem entre os pingos da chuva durante essa fase em que a sociedade os olha com mais complacência e compaixão. Mas, infelizmente, o cancro serve como desculpa, uma ferramenta para mostrarem aquilo que não são.

Um preconceito é sempre um preconceito. Seja por considerarmos o outro o melhor ser humano do mundo ou o pior. Não interessa. Não deveríamos colocar rótulos em ninguém, nem o rótulo de santo nem o de besta.

Porque depois não adianta de nada reclamar os dois minutos e meio que gastámos com gente que não interessa a ninguém. Mesmo que esse tempo gasto tivesse servido para fazermos um grande xixi.

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