Assim mesmo, sem apelido, só o nome próprio que os filhos usam para se dirigir a ele, num tutear onde não falta o respeito e abunda o afeto. Atticus, advogado. Assim, sem mais nada para além da identificação do que faz, que é afinal a sua identificação, porque abraçou essa função com os dois braços e procura exercê-la com a inteireza que se exige a quem quer realmente sê-lo. Atticus Finch, a personagem do livro de Harper Lee “To Kill a Mockingbird”, que numa Maycomb imaginária no Alabama da Grande Depressão aceita e cumpre com empenho e inteligência o encargo de defender o menos popular dos acusados no mais impopular dos casos.
Defender Tom, “o preto” aleijado, acusado de violar uma branca. Não há pior do que isso no sul dos Estados Unidos, nos anos 30 do século xx. Mas Atticus aceita, empenha-se, nunca vira a cara. Tem tudo a perder: a reputação, a sua segurança e a dos seus filhos, futuros clientes, a amizade e o respeito dos brancos de Maycomb, etc. Tudo o que um advogado “amiguinho de pretos” (como lhe chamam), ainda por cima “pretos violadores de mulheres brancas”, pode perder num Sul racista e pobre.
Atticus é um homem calmo, modesto e gentil, não procurou aquele caso, muito menos o protagonismo que ele lhe dá. Nem procurou o desassossego, o risco, a insegurança e a hostilidade. Mas quando lhe chega o caso, e com tudo isso às costas, ele não lhe vira a cara, não foge, não tergiversa e nunca deixa de pôr todo o seu empenho – tão firme quanto calmo e gentil – na sua tarefa, que é ser advogado de Tom.
Sabendo bem que o grau de civilização de um sistema processual penal se revela não só nas possibilidades legais de defesa dadas a um suspeito ou acusado, mas também no modo como os advogados abraçam essa defesa. Mesmo que para isso se torne quase tão impopular quanto o seu cliente, quase tão odiado quanto ele, quase tão preto – embora sendo branco – como ele. Quase ou mais. Afinal, defender um monstro não é – para os ligeirinhos, os preconceituosos e os hipócritas – pior do que ser um (suspeito) monstro?
E para quê defender Tom, se a corda já tem o nó dado e já está pendurada, a balançar e à espera, ou a cadeira já está ligada à corrente? Para quê defender Tom, e pôr tudo em risco, se o que “esses pretos” merecem é uma boa lição? Perguntas que, assim ou de outra forma, os bons cidadãos sulistas colocam a Atticus. Mas ele, calmo e gentil quase sempre, segue em frente, com a inteireza de quem sabe o que é ser advogado.
Ele não se interessa pelo campeonato da popularidade, apenas pelo da coragem, mesmo correndo todos os riscos, incluindo o de perder – num jogo com resultado marcado à partida. Pois alguém esperaria que “o preto” se safasse? E depois, se o júri dissesse “inocente”, o que se diria a toda a Maycomb, como se sossegariam as vozes brancas, como seria a rotação do mundo se acontecesse algo tão inesperado como safar-se alguém que ainda antes de ser julgado já foi condenado?
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