Da janela de casa, os dois filhos de uma das vítimas do tiroteio no bairro da Ameixoeira viram a mãe, de 42 anos, ser baleada. Na noite de terça-feira, Salete carregava a sua carrinha com os produtos que queria levar para o mercado quando uma bala lhe entrou pelo peito e saiu pelas costas. “Isto não vai ficar por aqui”, dizem os moradores.
Ninguém dá o nome e muito poucos aceitam falar. “Isso foram uns tiros, mas não sei de nada” é a resposta dada de forma insistente, quase como se tivesse sido combinada de antemão. Há medo na Ameixoeira. Medo de represálias, de uma nova investida por parte de quem invadiu o bairro há dois dias e começou a disparar para o ar. Tiros de caçadeira. Chegaram de armas e facas na mão. “Queriam meter medo aos de cá, vinham passar uma mensagem”.
Mensagem recebida. Mas que poderá não ficar sem resposta. É que a guerra entre quem entrou ontem na Ameixoeira aos tiros e os moradores do bairro é antiga e há contas por acertar. “Se a mulher morrer, aí é que vai haver problemas a sério”, dizem alguns dos moradores.
Danos colaterais O problema vem de trás. Ao que o i apurou, os dois homens e uma mulher (dois deles casados) que chegaram ao final da tarde eram rostos conhecidos por aquelas ruas. Vinham ajustar contas. “Vieram por causa de rachas antigas”, admite uma das moradoras que assistiu aos disparos, a uns dez metros de distância.
M. enfiou-se debaixo da arcada do prédio quando os tiros chegaram perto de onde estava – o tiroteio começou ainda antes de a polícia estar no bairro, ao contrário do que relataram alguns moradores ainda na noite de terça-feira, e foi a própria moradora a ligar para as autoridades nesse momento.
Salete estava no meio do fogo cruzado, entre a polícia e os ciganos que chegaram armados ao bairro. Quando M. olhou em frente, para o outro lado da estrada, já encontrou a comerciante a baixar-se lentamente, até acabar por cair no chão. “Nós pensávamos que ela se estava a proteger dos tiros, mas quando ela caiu percebemos que tinha sido atingida”.
Os primeiros agentes chegaram rapidamente ao local. Entre os disparos da polícia, que vinham da avenida Glicínia Quartin, e os de caçadeira, dos invasores do bairro, do lado da rua António Vilar, a mulher optou por proteger-se dos agentes da PSP, que tentavam pôr fim à disputa. Quem ali estava garante que o tiro que lançou a mulher ao chão saiu da arma de um dos dois elementos que tinham entretanto chegado ao bairro e que já se protegiam no interior de uma mercearia. “Entraram pela loja dentro e rebentaram com a geladeira. Só se via o braço de fora e tiros a sair, uns atrás dos outros”, diz um dos jovens que passaram a tarde a reviver aqueles minutos de tiroteio. “Quando cheguei ao pé da loja, um deles sai lá de dentro de braços no ar a pedir calma e a dizer ‘eu sei que fiz mal, eu sei que fiz mal’”, conta o mesmo jovem. O terceiro estaria deitado no chão, no estacionamento, já ferido.
Ontem, na carrinha branca ainda se viam os salpicos de sangue e um furo que a atravessava de um lado ao outro. No espaço entre a carrinha e um carro cinzento, logo ao lado, a poça de sangue de Salete. E os dois filhos da mulher, o mais velho com cerca de 13 anos, ainda de rostos colados à janela, com medo de sair de casa.
Quando a comerciante foi atingida, a segunda vítima civil – a mulher que chegou com os outros dois homens – também já estava estendida no chão, uns 15 metros mais atrás. Terá sido atingida com três balas: uma no abdómen, outra na cabeça e a terceira junto ao coração, na resposta dos agentes da PSP aos disparos de que foram alvo quando responderam à chamada de tiroteio de dentro do bairro.
Também nesse momento, os dois elementos já tinham conseguido escapar à PSP. Pelo menos um deles – conhecido pelas alcunhas de “Boneco” e de “Diabo” – tinha escapado por uma zona de mato nas traseiras dos prédios da Avenida Glicínia Quartin em que os agentes se tinham protegido. “Boneco” terá corrido em direção ao Eixo Norte-Sul, de volta ao bairro da Cruz Vermelha.
Mas até ao final do dia, as autoridades não tinham identificado nenhum suspeito, pelo que também não tinham sido feitas quaisquer detenções – foi apenas recolhida uma caçadeira, que se suspeita ter sido usada pelos atacantes no confronto com os agentes da PSP.
Nessa troca de tiros, três da polícia que estiveram no bairro também acabaram feridos. Dois foram atingidos na cabeça, sem gravidade, e acabaram por ter alta ainda na madrugada de quarta-feira. O terceiro agente teve de ser operado para remover alguns projéteis de caçadeira que ficaram alojados no corpo e continua em observação, apesar de estável.
Guerras antigas A Ameixoeira é um dos bairros da zona de Lisboa considerados problemáticos pelas forças de segurança.
L. e o marido vivem ali há quarenta anos. O prédio não tem fechadura na porta, as paredes há muito que deixaram de ser brancas e, olhando para o único elevador, as escadas revelam-se o caminho mais seguro até aos andares superiores.
Ao contrário da esmagadora maioria da população do bairro, não são ciganos, mas garante que a relação com os vizinhos “mais antigos” é tranquila. “Os problemas”, conta L. entre dentes – “sabe como são estas coisas, não é?” -, começaram quando, há pouco mais de dez anos, a câmara de Lisboa decidiu despejar ali os moradores do antigo Vale do Forno.
Ontem, quando ouviu os primeiros gritos, L. foi à janela para ver o que se passava. Mas assim que os tiros começaram entrou em casa e não quis ver mais nada, com medo de torna-se outro dano colateral na história. Já viu as discussões descabarem muitas vezes em tiros – “mas nunca vi uma coisa assim como a de ontem”. Despertou para o filme que se desenrolava a 30 metros da sua porta quando, já noite dentro, a polícia lhe bateu à porta. Estavam a revistar os edifícios do bairro à procura dos dois atiradores quando os homens já estariam a uns três quilómetros dali.
Os três antigos moradores do bairro – os dois homens e a mulher – tinham deixado a Ameixoeira há uns anos por “conflitos” com outros moradores. Quais, ninguém ousa dizer. “Nós moramos aqui, e se falamos disso eles podem voltar cá outra vez. Somos todos ciganos e quando é para atacar, atacam-nos a todos”, diz um jovem, que logo a seguir recusa um pedido de entrevista para um canal de televisão. Dar a cara, nem pensar.
Terá sido para tomar uma posição sobre esses problemas antigos que os dois homens e a mulher saíram do bairro da Cruz Vermelha, onde agora moram, e atravessaram o Eixo Norte-Sul em direção ao antigo bairro das Galinheiras.
IGAI abre inquérito Depois do tiroteio, e enquanto a PSP varria os prédios em volta do local do tiroteio, a Polícia Judiciária – a quem cabe a investigação, por estarem envolvidas armas de fogo – esteve a recolher provas do episódio de violência.
Ontem, dois inspetores voltaram ao bairro durante largos minutos, a meio da tarde. Falaram com os jovens que se reuniam à porta da casa de Salete e analisaram, mais uma vez, as marcas da noite anterior. Quiseram saber onde se tinham protegido os agentes, pediram mais dados às testemunhas e também estiveram muito centrados na carrinha branca atrás da qual a comerciante se escondeu.
Ao final da tarde, o “Expresso” confirmava a tese em que os moradores mais apostavam. Na sua edição online, o semanário citava fonte judiciária responsável pela investigação que admitia existir uma “forte possibilidade” de Salete ter sido vítima de uma bala perdida ou de um projétil que tivesse feito ricochete mas que, em qualquer dos casos, poderá ter sido disparado pelos agentes da PSP.
Entretanto, a Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) abriu um relatório para apurar “todos os factos” em torno do tiroteio de terça-feira.
No lado da rua oposto ao dos inspetores da Polícia Judiciária, os moradores balançavam entre as críticas à atuação da polícia e o apelo para que fosse instalada uma “super-esquadra” no bairro. “Eles [os agentes] chegaram aqui, viram que as pessoas estavam aos tiros, puxaram das armas e começaram a disparar”, diz um dos mais velhos, nos seus sessenta anos. “Se não tivessem chegado com tudo, não teria acontecido o que aconteceu”, continua o morador.
Mas o mesmo homem considera que faz falta mais policiamento no bairro. “Construíram ali ao fundo um espaço para a integração do cigano, mas aquilo está para lá fechado e não serve para nada. Então não aproveitavam e faziam ali uma super-esquadra? É que, com a polícia aqui à porta [a esquadra mais próxima fica no bairro da Cruz Vermelha, de onde saíram os três elementos que causaram distúrbios na terça-feira], uma pessoa que quisesse fazer alguma asneira sempre pensava duas vezes e até se evitavam tantos problemas”, defende o homem.
Novo tiroteio em Almada Mas ainda a tranquilidade não tinha sido reposta na Ameixoeira quando, na margem sul do Tejo, houve registo de novos episódios de violência envolvendo armas.
Na Quinta do Chegadinho, em Almada, ao início da tarde, houve um tiroteio, Pouco depois, segundo avançou o “Correio da Manhã” da sua edição online, a PSP intercetou dois carros em que seguiam dez pessoas. Os suspeitos acabaram por ser todos levados para a divisão da PSP de Almada.
Segundo o diário, e à imagem do que aconteceu na Ameixoeira, a troca de tiros também terá estado relacionada com um ajuste de contas entre dois grupos rivais daquele zona – com cinco elementos da Quinta do Chegadinho e outros cinco de Miratejo. Além dos dez suspeitos foram apreendidas duas armas de fogo, uma caçadeira e uma pistola. Mas neste caso não houve registo de quaisquer vítimas.