A memória é um bem precioso em política. E escasso também. Ouve-se por aí uma conversa alimentada pelos entusiastas da nova coligação que pinta o anterior governo como pai da austeridade e responsável pela chegada dos senhores da troika à Portela para cobrar o terceiro resgate. Por ser a encarnação de todos os males, urge derrubar, pedra a pedra, todas as reformas deixadas pelo governo de Pedro Passos Coelho. Isto é um perigo para os portugueses e uma vergonha para a democracia. É um perigo porque tenta reescrever a história dos últimos cinco anos. É uma vergonha porque infantiliza os cidadãos. Essa conversa ou, por conveniência, essa narrativa veste bons fatos sem gravata, ocupa tribunas credíveis na comunicação social e tem palco nos supostos centros bem-pensantes da capital.
A narrativa assenta em três falácias. A primeira é a de que o governo de coligação PSD/CDS é o patrono da austeridade no país, e Pedro Passos Coelho o seu testa-de-ferro. A credibilidade desta acusação dura menos do que um fósforo. Com o governo socialista, o IVA, o mais cego de todos os impostos, não subiu nem uma nem duas, mas sim três vezes. De 19% para 23%. O último pulo do imposto foi dado em 2011. Com os socialistas ao leme do país até aí, Portugal não conheceu outra coisa que não fosse a linguagem da austeridade. Ora repare: as pensões foram congeladas; os abonos de família foram cortados para todos, incluindo os mais pobres (do 1.o e 2.o escalões); os encargos com exames médicos (como radiografias e análises) aumentaram dramaticamente; tiraram-se 70 milhões de euros ao RSI, que é a rede dos mais desfavorecidos; esmagaram-se os trabalhadores independentes com mais contribuições para a Segurança Social; apertou-se o cerco fiscal às famílias colocando tetos às deduções do IRS; trouxe-se o investimento público para zero. Ah… falta a cereja no topo do bolo austeritário: foram os socialistas que inauguraram os ataques aos salários na função pública, com uma machadada que cortou, em média, 5% dos vencimentos. Não é por ser do PS que a austeridade deixa de ser austeridade. E também não é por ter sido antes de 2011 que estas medidas deixam de ter o dedo de António Costa. É que, na altura, António Costa era o número dois do PS e um dos mais destacados defensores do seu governo na “Quadratura do Círculo”. É o PS o pai da austeridade. Desta austeridade e da outra que estaria para vir agarrada ao memorando da troika. Porque foi o PS que assinou e negociou o resgate que impôs aos portugueses medidas duríssimas que o governo de Passos Coelho teve de aplicar em anos de chumbo. António Costa e os seus pares deveriam ser obrigados a escrever cem vezes no quadro do Conselho de Ministros: “É o PS o pai da austeridade, do memorando e da aterragem da troika em Portugal para cobrar o resgate.”
A segunda falácia das esquerdas é acusar o PSD de ser um bando de perigosos liberais. Ou, para usar o tremendismo radical, um partido neoliberal. Uma tolice. Passos Coelho, a bem do interesse nacional, governou com um programa que não era e nunca foi o seu. Apesar das circunstâncias, conseguiu fechar o fosso da desigualdade criando uma rede de proteção que impediu a queda dos mais desfavorecidos. Ao mesmo tempo, recuperou a soberania financeira do país, estabilizou as finanças públicas e inaugurou um período de crescimento. Quem faliu o país matou o Estado social. Quem recuperou o país defendeu o Estado social.
A última falácia liga-se à bondade do Orçamento do Estado. Numa linha: é um OE que dá pouco a alguns para tirar muito a quase todos. É um OE feito para clientelas. Com um problema adicional: coloca desnecessária pressão sobre as finanças públicas e põe em risco o crescimento garantido pelas reformas iniciadas. Depois dos cenários, dos esboços e dos esquissos orçamentais, o OE não para de colecionar erratas. A elas se somaram exigências de um “plano B” – leia-se mais austeridade. Mas como a esquerda no poder gosta de deixar uma marca de paz e amor em todas as políticas, como se da nova coligação emanasse uma interminável bondade antropológica capaz até de tocar o empedernido coração da CGTP, a austeridade de esquerda é, evidentemente, boa. E os portugueses, assim o espera Costa, vão recebê-la de braços abertos e sorriso nos lábios, como os sindicatos afetos ao PCP.
Eu cá não contava com isso. Quando se confirmar que a página da austeridade não vira, muita gente correrá a apresentar erratas ao governo. E não faltará quem convide o primeiro-ministro a apresentar o seu “plano D” de demissão. Nada menos que isso lhe será exigido se a triste história de desgoverno socialista até 2011 se repetir nos novos tempos.