Comparativo. O que separa Cavaco de Marcelo e o que é igual

Comparativo. O que separa Cavaco de Marcelo e o que é igual


10 anos exatos separam os dois discursos. Cavaco foi exigente e palavroso. Marcelo, afetuoso e inspirador. Mas nem tudo foi diferente


Marcelo, o breve Tinha prometido um discurso curto e cumpriu. Gastou menos 1882 palavras que Cavaco para tomar posse, e poupou nas consoantes mudas: é que apesar das reticências pessoais ao acordo ortográfico,  Marcelo aplicou institucionalmente o acordo na sua primeira intervenção como Presidente.

Competitividade O mantra de Cavaco, o ‘mission statement’ da sua presidência está contido numa frase: quer “tornar o país mais competitivo”. O anterior Presidente fez aliás da economia o centro do discurso na Assembleia da República, a 9 de Março de 2006. A palavra economia é repetida 9 vezes, tantas vezes como competitividade ou competição. E dos “cinco grandes desafios” que se “atreve” a lançar com “urgência” à classe política, não por acaso, o primeiro consiste na “criação de condições para um crescimento mais forte da economia portuguesa”. Para Cavaco, o social vem por arrasto, ou nas suas palavras, “o desenvolvimento é económico para poder ser social”. Marcelo inverte os fatores: “[a nossa identidade nacional] tem sempre presente que o poder económico se deve subordinar ao poder político”.

Afeto O primeiro pensamento de Marcelo, no início do discurso, foi “para Portugal, para cada portuguesa e para cada português”. Um pensamento feito de “afeto”. E se o discurso de Cavaco é uma espécie de “Economia para totós” oferecido aos portugueses, o emotivo discurso de Marcelo aparece como um motivador livro de auto-ajuda: “Continuamos a minimizar o que valemos. Valemos muito mais do que pensamos”. Há ainda esta massagem ao ego nacional: “Temos de sair do clima de crise (…) afirmando o nosso amor-próprio, as nossas sabedoria, resistência, experiência, noção do fundamental”.

Amo-te Torga Marcelo citou Miguel Torga, esse definidor da alma portuguesa, para puxar pelo ego pátrio: “O difícil para cada português não é sê-lo, é compreender-se”, “não somos um povo morto, nem sequer esgotado”. O texto é de 1987. Mas também Cavaco Silva citou o escritor transmontano, aproveitando um verso do livro “Portugal”, duas décadas anterior: “Nesga de terra debruada de mar”.

Mar  A definição de Torga serviu a Cavaco para falar do mar, que definiu como “enorme oportunidade” e uma “potencialidade económica”, no discurso inaugural da década em Belém. Odesígnio cavaquista é agora retomado por Marcelo, que promete “continuar a assumir o mar como prioridade nacional”. E, acrescentando outro escritor ao discurso, Marcelo cita Lobo Antunes: “A minha terra é pequena, eu quero morrer no mar”.

Mais à esquerda Marcelo  “não se satisfaz com a contemplação da frieza dos números, quer chegar às pessoas” e “lutar por mais justiça social”. Não se resigna a uma sociedade com “dois milhões de pobres, mais meio milhão em risco de pobreza”, lamenta as “chocantes diferenças entre grupos, regiões e classes sociais”. No final do discurso, depois de dizer que seria “um Presidente que não é nem a favor nem contra ninguém”, manifestou a sua preferência pelo jovem que “procura emprego”, pela mulher que luta por ser reconhecida “num mundo ainda tão desigual”, pelo “pensionista ou reformado” desiludido. OPCP e o BE não aplaudiram, mas tinham razões para isso. Bastava esta frase que renega a austeridade: “Finanças sãs desacompanhadas de crescimento e emprego podem significar empobrecimento  e agravadas injustiças e conflitos sociais”.

Cavaco, o exigente Seria injusto não detetar nas palavras que Cavaco Silva escolheu para a posse um elemento motivacional. Mas foi mais o professor exigente que o pai afetuoso. Insistiu numa “atitude de dedicação ao trabalho”, num “aumento da produtividade”, numa “atitude realista aos trabalhadores e aos sindicatos”. E resumiu numa expressão a atitude que pedia aos portugueses  – “uma cultura cívica de responsabilidade”, até porque “é errado acreditar que o Estado resolve tudo”.

O meu herói Cavaco termina o discurso com uma referência ao exato dia da posse, mas recuando ao ano 1500. Nesse dia venturoso, a frota de Álvares Cabral que embarcara com pompa para uma “viagem imortal de aventura e descoberta”, rumo ao Brasil, viu soprar  nas velas das caravelas “brisas propícias”. Cavaco identifica-se com Cabral, e esperou ficar associado “a bom tempo para a vida do país, que brisas favoráveis o conduzam no rumo certo” – enunciou.

Se Cavaco se identifica com o visionário e corajoso Cabral, Marcelo também termina o discurso com uma evocação literária (de Miguel Torga) – “uma criatura só não presta quando deixou de ser inquieta. E nós somos a própria inquietação encarnada”. Para Marcelo, que foi atacado por ser hiperativo, esta é uma passagem que soa a redenção. “Oessencial é que o nosso génio é a indomável inquietação criadora”.

Posso dizer a frase? No início dos mandatos, é tradição os Presidentes prometerem lealdade ao governo e colaboração ao Parlamento. Muda a fórmula. Cavaco Silva inventou a “cooperação estratégica” com o Executivo do PS de Sócrates, Marcelo saiu-se com a garantia de “solidariedade institucional indefetível” com a Assembleia da República, onde a ‘geringonça’ se reconstrói semanalmente para aguentar António Costa.

Consensos Mais um ponto a unir os dois Presidentes. Cavaco apontou para “consensos alargados” em torno dos principais objetivos nacionais. Marcelo retoma a expressão e dá prioridade à missão de “cicatrizar as feridas destes tão longos anos de sacrifícios”. Também lamenta a “perda de consensos” nos últimos anos e diz que “urge recriar convergências, redescobrir diálogos, fazer entendimentos”. De notar que esta insistência de Marcelo não deixa de ser um atestado do falhanço de Cavaco.

Constituição Se há crítica que a esquerda faz a Cavaco é a de que não fez cumprir a Constituição. Seja como for, o ex-Presidente não deu relevo ao texto fundamental do nosso sistema jurídico no discurso de posse. Já Marcelo, constitucionalista e deputado constituinte, lhe faz uma jura de amor e se declara seu “guardião permanente e escrupuloso”. Os seus valores “são os valores da Nação que nos orgulhamos de ser”.