Ataques ao governador. Crónica de um conflito anunciado

Ataques ao governador. Crónica de um conflito anunciado


Diferendo entre PS e Banco de Portugal vem de longe. Mário Centeno e Carlos Costa protagonizaram uma luta de poder dentro do regulador. Motivo: o polémico conceito de desvalorização interna


Os recentes ataques do governo à administração do Banco de Portugal (BdP) causaram estrondo, mas dificilmente Carlos Costa foi apanhado desprevenido. Com a subida de António Costa ao poder, coadjuvado por Mário Centeno, o governador sabia que o seu segundo mandato iria trazer uma relação difícil com o executivo, dado o historial de diferendos com o homem forte das Finanças. No Banco de Portugal, Carlos Costa e o agora ministro das Finanças estiveram em barricadas opostas num confronto ideológico durante o programa da troika. Os dois estavam separados quanto à necessidade de concretizar um conceito económico algo eufemístico: a desvalorização interna. Em termos simples, o corte de salários.

A recondução de Carlos Costa à frente do BdP, no verão passado, foi o primeiro momento em que se tornou mais clara a hostilidade do PS face ao governador. Depois de uma tensa comissão de inquérito do BES, em que o governador foi alvo de críticas pelos partidos à esquerda, o PS insurgiu-se com a decisão do governo de Passos, para a qual não foi consultado. Pedro Nuno Santos, que coordenou a bancada socialista na comissão do BES e desferiu os mais fortes ataques ao governador, classificou a recondução de Carlos Costa como “a mais partidarizada nos últimos anos”.

Mas o diferendo vinha de trás no que toca a Mário Centeno. Académico de carreira no BdP, esteve durante quase dez anos como diretor adjunto do departamento de Estudos Económicos e, na última fase desse percurso, assumiu interinamente as funções de economista-chefe. Tinha como presidente do conselho de administração Carlos Costa e a relação com a hierarquia foi difícil.

Viviam-se os tempos agitados da intervenção da troika, em que as conceções de Vítor Gaspar como ministro das Finanças faziam caminho. Nessa altura ganhou forma o conceito da desvalorização interna. Na falta de uma moeda própria para ganhar competitividade externa, Portugal deveria reduzir os preços e os custos salariais para atingir esse fim. A redução da taxa social única (TSU) e dos salários passou a ser encarada como o instrumento primordial para conduzir essa política.

Uma das primeiras decisões de Gaspar, ele próprio um antigo quadro do BdP, foi encomendar ao banco central um estudo sobre a forma de compensar a quebra das receitas de uma descida da TSU.

Terá sido essa a génese do intenso debate que agitou o banco central. O departamento de estudos onde estava Centeno partiu-se e não foi por acaso que o célebre estudo do BdP não foi conclusivo. Traçava apenas cenários e quantificava as várias opções, sem se pronunciar quanto ao caminho a seguir. A elite dos economistas portugueses estava dividida.

Mas Vítor Gaspar não desistiu da ideia. Como recordou numa  entrevista a Maria João Avillez, num avião a caminho de Bruxelas teve a ideia que pôs milhares de portugueses a manifestarem-se na rua contra o governo: a redução da TSU para as empresas, compensada com o aumento dos descontos dos trabalhadores.

Na prática, a decisão iria provocar um rombo nos rendimentos mensais dos portugueses e, no BdP, a opção é vista com desconfiança. Centeno mostra-se contrário a este corte de rendimentos e critica esta opção, primeiro dentro de portas e nas visitas da troika, que tinha de acompanhar como técnico. Como estava muitas vezes do lado contrário ao dos credores e da própria posição oficial da administração do BdP, Centeno torna-se uma pedra na engrenagem. Chega a haver queixas de ministros sobre a conduta do economista.

Sem o apoio interno de Carlos Costa, começa então a manifestar o desconforto de forma pública. Numa opção nada comum no BdP, criticou nos jornais as opções do programa de ajustamento. Uma entrevista ao “Jornal de Negócios”, ainda com Gaspar como ministro, foi explosiva: “Se continuarmos a insistir em resolver o problema via desvalorização interna salarial, não há salários que cheguem para pagar isso.”

As tomadas de posição valeram-lhe dissabores dentro do banco. O crescente protagonismo de Centeno caiu mal junto de Carlos Costa, alinhado com a visão de Gaspar e cioso do recato dos economistas da casa.

Quando, no final de 2013, são finalmente conhecidos os resultados de um concurso para ocupar o lugar definitivo de diretor do departamento – Centeno estava apenas como substituto temporário, depois da saída da diretora –, Centeno era o preferido do júri para ocupar o cargo.  Mas a administração tirou-lhe o tapete e o concurso foi anulado. “Nenhum candidato reunia a combinação de atributos necessária para assegurar o padrão de liderança e de gestão de equipas que garantisse a prossecução de um mais ambicioso posicionamento estratégico do departamento nos planos analítico e institucional”, justificou o banco central.

Centeno passou a consultor da administração, sem funções no departamento de estudos, e é nessa fase que a proximidade ao PS se intensifica. A ligação aos socialistas foi Fernando Medina. Os dois cruzaram-se na Comissão do Livro Branco das Relações Laborais, quando Medina era secretário de Estado. Foi o atual presidente da Câmara de Lisboa que apresentou Centeno a Costa, que o convidou depois para liderar o grupo de economistas que preparou o cenário macroeconómico do PS.

Quando Centeno subiu a ministro deu-se uma reviravolta irónica, face ao percurso do economista. Como é o ministro das Finanças quem tutela o sistema financeiro, o governador do BdP reporta algumas questões ao ministro, embora tenha estatuto de independência.

Os primeiros sinais de divergência não tardaram. Poucas semanas depois da tomada de posse, Centeno criticou publicamente o homem que Carlos Costa escolheu para liderar a venda do Novo Banco, Sérgio Monteiro. Depois assumiu numa conferência que deveria haver uma “reflexão” para alterar a supervisão financeira.

O confronto tornou-se mais óbvio com a transferência de obrigações do Novo Banco para o BES. Centeno assumiu que estava contra a decisão do Banco de Portugal e o conflito institucional tornou-se indisfarçável. E com as recentes declarações de António Costa, atingiu um novo patamar de tensão.