Em dezembro de 2010, Bernie Sanders fez um discurso de oito horas e meia, no Senado dos Estados Unidos da América, para protestar contra a aprovação de menores cortes de impostos para os muito ricos, promovidos pela administração Bush. Tecnicamente, estes discursos, quando inviabilizam a aprovação de legislação, são chamados de filibuster e foram imortalizados no filme de Frank Capra “Mr. Smith Goes to Washington”. No caso do discurso do senador do Vermont, isso não aconteceu. Mais uma vez, George W. Bush cortou milhares de milhões de euros aos impostos dos mais ricos, tornando os EUA uma sociedade ainda mais desigual, em que o fosso entre os mais ricos e os mais pobres cresce desde os tempos da eleição de Reagan. Como comentava o multimilionário Warren Buffett, a propósito de pagar percentualmente muito menos impostos que a sua empregada doméstica, “há uma guerra de classes nos Estados Unidos da América e a minha classe está a vencê-la”.
Segundo uma sondagem recente encomendada pela CBS/”New York Times”, mais de 66% dos norte-americanos acham que o dinheiro e os rendimentos deviam estar mais bem distribuídos e 72% defendem que as grandes empresas não deviam ter tanto poder político. Já em 2011, um estudo do Pew Research Center revelava que nos votantes de menos de 30 anos, 49% tinham uma imagem positiva do socialismo, contra apenas 46% que pensavam o mesmo do capitalismo.
O sucesso da candidatura à nomeação democrática de Bernie Sanders tem de ser visto à luz destes dados.
Filho de uma família judia, Sanders despertou muito cedo para a política, apesar de só se ter inscrito no Partido Democrata em 2015. O pai era um imigrante judeu fugido da Polónia que viu a sua família ser exterminada no Holocausto. “Um tipo chamado Adolf Hitler ganhou uma eleição em 1932. Ganhou uma eleição e 50 milhões de pessoas morreram devido a esse resultado na ii Guerra Mundial, incluindo seis milhões de judeus. Foi devido a isso que aprendi desde pequeno que a política é muito importante.”
A carreira e o ativismo político de Bernie Sanders começaram na Universidade de Chicago, onde aderiu à Young People’s Socialist League, braço juvenil do Partido Socialista da América, de ideologia social-democrata. Ainda como estudante, começou a militar nos movimentos contra a guerra do Vietname, pelos direitos civis e contra a discriminação dos negros. É na sequência dessas movimentações que Bernie Sanders concorre às suas primeiras eleições, já como membro do Liberty Union Party, que é criado a partir do movimento pacifista e do People’s Party. Obtém resultados marginais inferiores a 5% dos votos. Em 1979 deixa esse partido e torna-se diretor da American People’s Historical Society. É nesse cargo que produz um documentário sobre o líder histórico dos socialistas norte-americanos, Eugene Debs, e pronuncia em 1979 uma intervenção que o cita: “Eu não sou um soldado do capitalismo. Eu sou um revolucionário proletário. Sou contra todas as guerras exceto uma [a de classes].”
Em 1981, quando ganha a câmara de Burlington, coloca o retrato de Debs no seu gabinete, imagem que o acompanha para todos os seus cargos até ao gabinete de senador. Sanders está longe de ser simpatizante bolchevique como Eugene Debs. Apesar de ter passado a lua de mel com a sua atual mulher na União Soviética, é um defensor do modelo dos países nórdicos. Tem em relação aos outros “esquerdistas” dos EUA essa diferença e ainda outra, como revela o seu antigo colaborador Garry Nelson à revista “New Yorker”: “A diferença de Bernie em relação aos outros esquerdistas é que ele quer ganhar.” E foi assim que aconteceu até hoje. Eleito como independente para o Congresso e depois para o Senado, foi considerado o senador mais popular do país, com 83% de apreciação positiva em 2015. A sua candidatura obriga Hillary Clinton a resguardar a sua ala esquerda. O seu resultado, mesmo que não seja nomeado, indica a organização de uma nova e forte componente socialista no país: “O meu trabalho será ajudar a reunir gente para uma coligação capaz de vencer e transformar a política”, garante o próprio.