Trocando por miúdos: quem praticar perante “outra pessoa atos de caráter exibicionista constrangendo-a a contacto de natureza sexual” ou “formular propostas de teor sexual” – como é o caso dos conhecidos piropos -, pode ser “punido com pena até um ano de prisão ou multa até 120 dias, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”. E se as ofensas forem dirigidas a um menor de 14 anos, o tempo de prisão pode triplicar.
A importunação sexual diz respeito a atos desta natureza contra a vontade da vítima, que ponham em causa a sua liberdade e causem “receio, susto, intimidação e perturbação”. No caso de se tratarem de menores, esta conduta pode “perturbar o desenvolvimento livre da sexualidade da menor atingida”, pois “atinge a liberdade da vítima na vertente da sua autodeterminação sexual”, lê-se no documento.
Um longo caminho
A proposta de criminalização do assédio sexual, seja em meio laboral ou na rua, partiu da Organização Não Governamental UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta), uma associação feminista portuguesa com mais de trinta anos que tem como missão “despertar a consciência feminista na sociedade portuguesa”. No mesmo ano, a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio, veio dar mais força a este pedido.
Apesar de terem surgido vozes dissonantes na sociedade, apelidando as medidas contra o assédio sexual elencadas na proposta como “excesso de zelo”, Portugal foi o primeiro Estado-membro da União Europeia (UE) a ratificar a Convenção, em janeiro de 2013. De acordo com os princípios do acordo internacional, estava previsto que instrumentos jurídicos que tratassem a prevenção e criminalização do assédio sexual (no trabalho e na rua) fossem aplicadas na justiça nacional.
Uns meses após a ratificação, ainda em 2013, o BE apresentou uma proposta de lei sobre o tema. Nova vaga de debates, cada vez mais vozes – femininas e masculinas, de políticos a comentadores – ridicularizando a proposta. E, em simultâneo, levanta-se um véu de memórias na cabeça de milhares de mulheres: há, houve e haverá homens a incomodar meninas e mulheres usando palavras e expressões obscenas, ao ponto de as instrumentalizarem como objetos de sexo e as fazerem sentir desconfortáveis com o seu próprio corpo.
Resultado: a proposta do BE foi favoravelmente votada por todos os grupos parlamentares.
Piropos e piropinhos
Contrariamente à discrição com que a lei entrou na sociedade, os piropos costumam ser, por norma, bastante audíveis. Na sua esmagadora maioria, são formulados por homens e direcionados a mulheres e adolescentes, que por vezes ainda estão a passar pela puberdade. É comum associá-los a homens com certas profissões – como os trolhas -, e são transversais a todas as idades.
Este tema deu azo a tanta celeuma porque parece ter que ver com dois pesos e duas medidas, que se prendem com o conteúdo da abordagem em si. Se há frases que, atiradas em alguns contextos e ditas a mulheres maiores de idade, podem provocar um sorriso, a grande verdade é que muitas delas usam liguagem rude e brejeira, com mensagens ofensivas de cariz declaradamente sexual.
Inês P. tem hoje 28 anos, mas não se esquece de um episódio que lhe aconteceu quando tinha 12. Um dia, entre o caminho de casa para a escola, um homem que passou por si disse-lhe que a queria “lamber toda”. “Isto marca uma criança, que é o que era naquela altura”, contou ao i. Maria F. era pouco mais velha quando dois homens lhe disseram à porta de um pavilhão desportivo – onde ia ver o irmão mais novo jogar – que lhe queriam “partir o rabo todo”. “Nem percebi bem o que me queriam dizer, devia ter 13 anos ou assim. Mas lembro-me bem do que senti e sei que aquelas palavras me perseguiram como uma faca durante largos anos.” Nem Maria nem Inês contaram aos pais, porque houve um sentimento comum às duas que as fez ‘calar’ o sucedido: vergonha.
Assédio reiterado
Arranjar estes testemunhos foi assustadoramente fácil, o que prova que estas situações são banais. E, obviamente, que ganham contornos que merecem especial atenção quando são envolvem crianças e adolescentes.
Se as mulheres – tal como os homens – gostam de ser lisonjeadas, nenhuma mulher gosta de ser ofendida. E há muitos piropos, e muitas formas de os dizer, que mais não são do que atos de violação verbal.
A lei fala de assédio reiterado, no entanto, será sempre difícil – pelo menos até que haja uma condenação – em traçar essa linha. Portanto, homens deste país dados a esta unilateral forma de comunicação: mesmo que achem que estão a dizer um piropinho, calem-se. E se o vosso objetivo não é serem engraçados, mas sim dirigirem efetivamente uma proposta de cariz sexual, lembrem-se: a brincadeira pode terminar, literalmente, em prisão.